José Alexandre Saraiva*
O primeiro desafio para renovar a carteira de motorista não foi nenhuma surpresa. Mera sucessão de atos típicos da burocracia de Pindorama.
Primeiro, tive de explicar na página do Detran que eu não era um robô. Eu era eu mesmo. Vencida essa fase, para obter a guia de pagamento do serviço, foi preciso criar a senha “x”, em seguida decorar a senha “y” e só assim habilitar-me a receber pelo Messenger a senha “z”. Após algumas tentativas, enfim, a guia com o código de barras. Procurei quitá-la normalmente, como qualquer boleto, utilizando o aplicativo do meu banco, mas descobri que só poderia fazê-lo em uma das três instituições bancárias amigas do Detran. Nem mesmo na lotérica foi possível quitar a obrigação compulsória. Refiz o estressante passeio na página do Detran e imprimi nova guia. Ato contínuo, recorri a uma filha que opera com um daqueles bancos autorizados. Taxa quitada, voltei ao site do Detran com o número do protocolo que me foi enviado para agendar o exame. Mais uma vez, tive de convencer o órgão de trânsito de que realmente eu era eu.
Enfim, o dia D (por coincidência o mais letal da pandemia), no indigesto horário das 13h37. Não bastando isso, numa clínica localizada nos confins do Parolin, distante 15 quilômetros da minha casa. Meia hora após deixar as digitais na maquininha da recepcionista, a médica, uma senhora magérrima e já em provecta idade, dá um passo para fora do consultório e chama meu nome. Entramos no consultório praticamente emparelhados, ela um pouco à frente. Já ia sentando quando a doutora me pede para fechar a porta. Justifico que tenho evitado tocar em superfícies, incluindo maçanetas, por isso, usaria o cotovelo. Dei aquela cotovelada na porta e me reaproximei da mesa da médica.
“Sente-se. O senhor é José...? O formulário que o senhor preencheu na recepção é o mesmo que preencheu na ficha eletrônica do Detran? Seu documento de identidade com foto, por favor!” Depois de checar alguma coisa no computador, ordena: “Agora vá ali atrás e sente-se...” Fui lá. Ao me aproximar de uma maca, a doutora avisa que não é na maca. ”É na cadeira!”. Sentei na cadeira. “Quais são as letras que o senhor está enxergando na primeira linha deste painel atrás de mim? Procure não errar, seu José, se errar será reprovado”. Prossegue: “ Agora, encubra o olho direito com a mão direita e me diga quais são as letras da quarta fileira do painel”. Tentei explicar que enxergo melhor com os dois olhos bem abertos. Ela interrompeu minha fala. “Dispenso suas explicações. Aqui quem pergunta e quem explica sou eu! Quais as letras que o senhor vê com o olho esquerdo na quarta fileira do painel, seu José? Não, não! Eu falei quarta fileira. Diga as letras da quarta fileira, seu José... Vamos passar para o outro olho. Cubra o olho esquerdo com a mão esquerda! Diga as letras da terceira fileira que o senhor vê com o olho direito”. Etc, etc. “Levante-se e sente aqui novamente. Vou medir a sua pressão... Preciso medir outra vez... agora só mais uma vez... Descanse a mão na mesa... Assim não, estique o braço na mesa... Solte a mão na mesa... Vou falar pela terceira vez... Solte a mão e estique o braço na mesa... Agora, fique em pé... Fixe os olhos no visor do aparelho ao lado e vá dizendo as cores das luzes quando eu perguntar... Qual a que está mais perto? Não erre! E agora, que cor é esta? E esta? Cuidado, não encoste os olhos na superfície para evitar eventual contato com o novo Coronavírus... Vamos concluir o exame, seu José... Sente-se... Pegue e aperte com força o dinamômetro.” Como? “Pegue e aperte com força este dinamômetro”. Peguei o dinamômetro – uma espécie de alicate de tratorista, e o apertei com a força de Maciste. A médica olhou na tela do computador, olhou pra lá e pra cá, olhou pra cima, olhou pra baixo, digitou não sei o quê com seus dedos ricamente anelados, engoliu um seco insondável, fitou-me friamente e sentenciou: “Exame concluído. Seu José, o senhor foi aprovado. Pode retirar-se. Não precisa fechar a porta!”
*Advogado, escritor e músico.
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