terça-feira, 15 de agosto de 2023

A etnografia de Garanhuns

Criança indígena na Feira de Garanhuns. Créditos da foto: Lula Samuel
A Serra dos Garanhuns, indescritível pela sua  beleza panorâmica e pelas suas riquezas minerais, aguadas e clima, é, geologicamente, de origem muito remota.

A sua coluna geológica, pertencente às idades Primária e Secundária, é constituída por um profundo horizonte de gnaisse algonquiano, da Era Proterozoica, da ordem de um bilhão e meio de anos, pertencente ao complexo fundamental brasileiro, e por um espesso capeamento sedimentar da argila cretácea, da Era Mesozoica, de cento e quarenta milhões de anos, que repousa sobre o referido "complexo cristalino" de Branner.

Nela habitaram, no começo da colonização portuguesa, ainda no século VXI, os selvícolas de raça Kiriri ou Kariri, da tribo dos Kariú (Cários) possivelmente, que pela corruptela túpica deu Guiranhú ou Unhanhú, de Guirá - guará, ave vermelha pernalta, aquática, (Guara rubra Linneu) e Anhú ou Anhum - anum, pássaro preto, crotófago, (Crotophaga ani Marckgrave), que habitavam no vale do rio Mundaú, perto de sua nascente, local da primitiva aldeia. 

Teodoro Sampaio (1) disse que o vocábulo Garanhuns é  proveniente dos étimos túpicos: Guira - nhu, de significação - "os pássaros pretos".

O professor Delfino Torres, porém, é de parecer que o significado mais preciso será o de: "campos dos guarás", sendo estes animais não aves porém canídeos que infestavam o vale do rio Mundaú, segundo se depreende da expressão túpica: guira-nhun-ita (campos dos guarás), cujo sufixo ita indica o plural ao invés do s português da palavra Garanhuns.

A palavra Garanhun, todavia, significa: campos dos guarás e dos anuns, segundo se verifica dos documentos históricos descobertos por Ernesto Ennes no Arquivo Colonial de Lisboa e por mim e Alfredo Leite Cavalcanti nos Cartórios de Garanhuns, nos quais vem grafado, indistintamente, ora "Campos dos Unhanhú" ora "Campos dos Garanhun".

Além das aves citadas, raposas (Canis vetulus Lund), ou mais precisamente Dusicyon vetulus Lund, e guarás (Canis junatus Desmarest), ou melhor, Chrysocyon brachyurus IIIiger, existiam em  quantidade, aos quais os tupis designavam "Guaracaim".

Afirma Capistrano de Abreu em "Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil" que "no avanço para o sertão, os  colonizadores defrontaram os selvícolas, entre os quais sobressaíam os cariris, antigos dominadores do litoral, então acuados entre o São Francisco e a Ibiapaba".

Relativamente à área geográfica habitada pelos cariris, dos  quais os Unhanhú ou Garanhun foram os principais representantes, o Autor desconhecido dos "Apontamentos para o Dicionário do Brasil" informa que "os cariris habitavam a cordilheira da  Borborema, e são atualmente denominados Novos e Velhos Cariris. Estes últimos moravam nas serras que separam o Estado da paraíba do Estado de Pernambuco e foram assim chamados por serem os primeiros conhecidos pelos portugueses quando penetraram na Cordilheira. Outra tribo dos mesmos índios que, mais tarde, apareceu no Estado do Ceará, recebeu o nome de Novos Cariris. Chamam-se simplesmente Cariris os que moram no Estado de Pernambuco. São em geral, de costumes grosseiros, vivendo da caça e de frutas".

As suas principais tribos, em Pernambuco, foram: os Unhanhú ou Garanhuns (Kariú), nas ribeiras do Mundaú, na Serra dos Garanhuns; os Chucurú ou Sukurú, na Serra do Ararobá ou de Orobá, em Pesqueira; os Pankararú ou Pankarú, no Brejo do Padre, na Serra de Tacaratú, em Jatobá (Petrolândia), e os  Uman, na Serra dos Umans, em Maniçobal.

Na carta de D. Matias da Cunha a El-Rei de Portugal, descoberta por Ernesto Ennes, no Arquivo Histórico Colonial de Lisboa, acerca da tremenda insurreição do gentio situado nas  ribeiras do Canindé, Jaguaribe, Apodi e Assu, bem como na Chapada do Araripe e Cordilheira da Borborema, datada de 18 de julho de 1692, vem escrito que a nação cariri "estava dividida em 22 aldeias, sitas no Sertão que cobre as Capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, nas quais há 13 para 14 mil almas e 5 mil homens de arcos, destros nas  armas de fogo".

Estas aldeias cariris, do Nordeste, eram as seguintes: Anassús e Alongás, na Serra da Guapava, no Piauí; Aruás ou  Otuás, no riacho São Vitor, no Piauí; Arales ou Orises e Acumés, nas cabeceiras do riacho Piaui; Aroatis ou Coaratises e Jaicós ou Jucás, nas cabeceiras do riacho Canindé. no Piauí; Corsiás, no  riacho Gorgueia, no Piauí; Icós, Ubatés, Meatans e Paiacús, na Chapada do Araripe, no Ceará; Teremembés, no litoral cearense, desde a barra do rio Jaguaribe até a do Parnaiba: Uriús ou Ariús, próximo da Serra do Araripe, no Ceará; Janduis, nos  vales do Apodi e do Assús, no Rio Grande do Norte; Chocós ou Vouvês, nas proximidades da Serra do Araripe, na Paraíba; Umans, na Serra dos Umans, em Maniçobal, Pernambuco; Chucurú ou Sukurú, na Serra do Ararobá, em Pesqueira, Pernambuco; Pankararú, no brejo do Padre, em Tacaratú, Pernambuco; Unhanhú ou Garanhuns, no brejo do Mundaú, na Serra dos Garanhuns, em Pernambuco; Karnijó ou Fulni-ô, no vale do Panema, em Águas Belas, Pernambuco; Akonans, no vale do  São Francisco, em Penedo, Alagoas.

Nos "Apontamentos para o Dicionário Geográfico do Brasil" consta o vocábulo "Karnijó" com o seguinte significado: Rio do Estado de Pernambuco, banhando o Município do Bom Conselho e desaguando no rio Traipú, afluente do São Francisco.

Afirma o etnólogo Max Boudin não haver dúvida que os portugueses seguiram um processo lógico na criação dos topônimos, e, que, ao qualificar um rio desconhecido com a palavra Carnijó, haviam já anteriormente denominado um grupo indígena com o mesmo nome - grupo esse que, nessa época remota, residia perto do rio citado".

"É bom lembrar que o Município do Bom Conselho fica distante menos de quinze léguas do aldeiamento atual dos índios "Fulni-ô", o que pode justificar a asserção, segundo a qual estes últimos estavam localizados à beira do rio Carnijó".

"A palavra Carnijó, cuja fonética não pertence ao gênio da  língua ia-tê, parece ser a corruptela da palavra tupi Carijó, aplicada aos "Fulni-ô" que dificilmente poderiam adotar este novo vocábulo e o alteraram. Sabendo que a língua ia-tê não conhece o r tupi, a única possibilidade seria a base do tupi Carijó, ka(h)iyo, que deve se tornar, automaticamente, por  uma evolução fonètica aos Fulni-ô, em Ka(h(-ni-vo, conforme Ful-ni-yo, forma arcaica de Fulni-ô, de onde - Ka(r)nijó".

"Assim esclarecida, torna-se mais fácil compreender a denominação histórica do Carnijó (ou Carijó), na língua geral, atribuida aos escravos indígenas que tomavam parte nas expedições de descobrimento e conquista, chefiados pelos bandeirantes. Em outras palavras, o Carnijó é o índio amansado".

Max Boudin discorda da clasificação da tribo "Karnijó" como povo de raça Kiriri, ou Kariri.

Os Kariri, provavelmente, parentes remotos dos Karaiá, procederam, talvez, no planalto central do Brasil, habitat destes, dadas as crenças e costumes idênticos.

Os prai-á, em ambos os povos, vestiam-se de fibras de fôlhas de palmeiras, ou do caroá (Neoglaziovia variegata Mez.), nos cerimoniais festivos do ajucá, do culto do urikuri.

Povos taciturnos, nas suas reuniões festivas acalentavam com carinho as recordações nostálgicas de sua pátria de origem - "a região do lago encantado", "a terra onde nunca se morre", que Capistrano de Abreu supôs ser o rio Amazonas mas, que, certamente, será o lago Titicaca, no Peru, pois, segundo Karl von den Steinen, os Karajá descendem dos Bacairís e estes dos  Karios, ou Karas, novos primitivos dos Andes, que são de civilização marginal pré-incásica.

Eles desceram das culminâncias andinas para o planalto central goiano pela bacia amazônica, e, então, passaram à Chapada do Araripe, subindo uns para o norte até a Serra da Ibiapaba, no Ceará, e outros descendo pela Cordilheira da Borborema até ocuparem as serras nordestinas isoladas que apresentam condições ótimas de vida, pelas suas aguadas e pela fertilidade, a par do excelente clima que possuem. Fixaram-se, então, nos sertões do Nordeste Brasileiro, como povos de planalto, amantes de regiões semiáridas, de climas secos.

Como afirmou Angyone Costa na sua "Introdução à Arqueologia Brasileira", "dentro da secura e semiaridez do Nordeste, numerosas tribos, constituindo uma grande família, foram muito cedo se estabelecer".

Fonte: A Terra dos Garanhuns / Professor João de Deus de Oliveira Dias / Garanhuns, PE - 1954. Foi mantida a grafia da época.

Foto: Criança indígena na Feira de Garanhuns. Créditos da foto: Lula Samuel.

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