terça-feira, 1 de agosto de 2023

Bom dia Recife

Ronildo Maia Leite
Ronildo Maia Leite (foto)*

Daquele casarão quase no topo do Magano, que meu tio Arthur Maia chamava de "Magano dos meus amores" na sua poesia ingênua, guardo mais a imagem do padre do que do próprio Ginásio. Porque o ginásio, pra mim, continua sendo ele próprio. Insubstituível.

Não entendo, ainda hoje, aquele longo corredor sem aquela batina preta se inflando ao vento, que soprava misteriosamente de  seus rápidos e silenciosos pés: sem ninguém ouvir, lá vinha o padre se escorrendo em pé pra me surpreender em plena e alegre molecagem nas aulas do professor de inglês, aquele homem de voz fina, pequeno e bom, que a minha juvenil maldade apelidara de Professor Tiquinho.

Nem consigo compreender a  tranquilidade de sua capela sem aquela figura magra, quase esquálida, a comandar com o olhos agudos as gravíssimas lições de moral e cívica. Eu me amoitava de medo e, confesso, respeitava mais o padre do que a imagem de  Cristo. temia mais os seus castigos do que o incrível inferno de labaredas penduradas do teto, feito estalactites, que me pintara o primeiro Catecismo da Doutrina Cristã. O padre me parecia então um santo, porque dizia coisas muito bonitas, geralmente ligadas ao céu. E também um demônio quando me falava ameaçador, a curtir os seus pecados no ensinamento do bem. Fazei o que o digo e não o que fiz, raciocinava eu. Imaginava que as pessoas somente viram santas por que antes foram pecadoras.

Esse padre já pecou, desconfiava eu distraidamente. Tão distraidamente que, um dia, em plena capela soltei um traque (daqueles que a gente pensa que vai sair baixinho) e fui expulso da aula. Pequei? E padre não faz isso? Na capela, não respondia a minha inocente voz da consciência.

Como também não compreendo, ainda, que hoje sejam diferentes os seus métodos, de si mais modernos, aquele imenso salão do segundo andar um verdadeiro purgatório dos traquinos sem aquele homem carrancudo com um livro de capa preta todo aberto, como se estivesse deitado entre as duas mãos espalmadas, caminhando pra lá e pra cá um olho na imitação de Cristo, o outro no bloco de papel almaço onde eu deveria escrever cem vezes "devo ser bem comportado". Somente porque chamara Otaciano de  Otacioba, logo a quem?, aquele professor comprido que ensinava geografia uma mão apontando o mapa-múndi, a outra alisando as  suas moralidades.

Eu perguntei: somente isso? Ele entendeu obscenidade. "Devo ser bem comportado, devo ser bem comportado."

Nem admirar, como outro dia admirei, aquele São José grandão, logo na  entrada do prédio, sem ouvir as pisadas do padre lá em cima, toc-toc no assoalho, caminhando pra lá e pra cá, com toda a certeza, lendo o seu inseparável missal. Pois aquele desbotado mural de São José padroeiro do ginásio e depois meu amigo pessoal estava pintado exatamente entre as duas escadarias abertas em leque. Bem no centro, de braços cruzados, tenso feito um soldado da rainha da  Inglaterra, eu cumpria intermináveis horas de  castigo, as visitas chegando, olhando e  dizendo mexeriquieras: "Esse filho de seu  Leite..."

Também isso: ainda hoje, tenho uma  cicatriz no joelho e um raspão na canela. Não sei se a prática ainda se repete, mas não entendo aquele campo de futebol, voleibol, basquetebol e ginástica, tudo junto, sem a  mesma figura magra e esquálida. Braços cruzados, parado bem na bandeirinha de  córner, tomando conta da molecagem da gente. Pois dia, Diderot Matos amigo do  padre porque estudioso e aplicado me pegou de jeito na hora triunfal o gol: caí de frente, me arrastando todo, o sangue se misturando na canela e no barro. E o padre, lá tomando conta. Quando olhei, o padre também me  olhava. E, carrancudo, sorria.

Já na época eu não rezava muito pela cartilha, nem do padre, nem da  Santa Madre Igreja Católica Apostólica e Romana. Aos 14, já desconfiava que, dentro de mim, tinha qualquer coisa de herege. Waldimir, meu irmão mais velho e meu guru, me estimulava nessas heresias, me dando livros pra ler, como um de um tal Bukarin,  com um ABC te teorias estrambólicas que me  levariam muito cedo à cadeia.

Eu fui entrando nessa, quase me  atolo. Mas atolado não estou. Hoje, lembro o padre mais do que o ginásio. O padre que, para mim era santo e demônio. E eu amava, e amo, as duas imagens. Mais a de São José, padroeiro do ginásio e depois meu amigo pessoal.

Bênção, padre Adelmar da Mota Valença. Soube de sua morte.

*Ronildo Maia Leite, jornalista e diretor do Arquivo Público Estadual. Artigo publicado no Diário de Pernambuco, edição de 24 de novembro de 2002.

Ronildo Maia Leite nasceu em Garanhuns em 30 de outubro de 1930. Estreou no jornalismo aos 13 de anos de idade no extinto Garanhuns Jornal, na sua cidade natal. Em 1951, ingressou no Jornal Pequeno, do Recife, de onde saiu, em 1955, para o Diário de Pernambuco. Formado pela primeira turma de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, foi laureado da Cadeira de Técnica de Jornal, recebendo o prêmio instituído pelo Moinho Recife. Faleceu em 2009, aos 79 anos.

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