segunda-feira, 28 de agosto de 2023

A insônia de João da Sola

O sapateiro João da Sola, como era conhecido onde morava, era vítima de uma insônia terrível que o obrigava a passar noites e mais noites em claro. Geralmente passava os prolongados serões em sua tenda, nos consertos de calçados. Era, igualmente, um inveterado frequentador de sentinelas. Não pretendendo deixar de trabalhar à noite, nem tampouco perder um velório, adotou por hábito solicitar consentimento dos familiares dos mortos para instalar sua banca e, assim, consertar sapatos na sala próximo as defunto, irmanando-se a dor dos parentes, enquanto realizava seu trabalho de sapateiro, havendo até quem o convidasse, nessas ocasiões, porque ficava ao lado do caixão, a noite toda, trabalhando, houvesse ou não pessoas no velório.

Embora não fosse agradável a missão, tornou-se útil sua presença, sendo infalível, pouco antes da meia noite, onde houvesse falecido uma pessoa. Os familiares dos mortos comumente se recolhiam, quando se encontravam exaustos e com muito sono, na certeza de que tudo permaneceria em ordem: as velas acesas, o incenso queimando e, pela manhã, o cadáver seria enterrado em perfeitas condições para realizar a última viagem.

O sapateiro ganhou fama de  corajoso, não tendo medo de almas nem de coisas do outro mundo. Assim, não tardou surgir quem desejasse por à prova sua coragem de desassombro. Assim, foi simulado a morte de determinado elemento, que ficaria deitado no caixão, e lá para as tantas, quando o sapateiro estivesse sozinho, trataria de se levantar para assustá-lo.

A notícia do falecimento chegou de imediato ao conhecimento de João da Sola, que, perto da meia noite, surgiu para ficar fazendo sentinela ao defunto e, ao mesmo tempo, prosseguir no seu trabalho, sendo  aceito de bom agrado por todos. Os presentes, conforme o combinado, retiraram-se momentos depois, ficaram espreitando, para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Preocupado com o defunto, vez por outra, ele deixava a banca e se aproximava. Ora para colocar um pouco de incenso numa vasilha com brasa, embaixo do esquife, ora para acender uma vela apagada pelo vento. E, em dado momento, quando se aproximou do caixão, o ocupante para pregar-lhe o susto, conforme combinado, foi-se levantando. João da Sola, que estava com o martelo numa das mãos, não conversou: vibrou-lhe um tremendo golpe na testa e exclamou:

- Oxente, quem já viu defunto se levantar!...

*Humberto Alves de Moraes   / Jornalista e historiador / Garanhuns, PE - Agosto de 1996.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Para não esquecer Alfredo Rocha

* Sebastião Jacobina | Garanhuns, 07/01/1995 Falar sobre o  intelectual, o escritor Alfredo Rocha, que me foi atribuído pelo Grêmio, entendo...