domingo, 20 de outubro de 2024

A influência da terra nas letras

Amaury de Medeiros*

Um tema constante na literatura é a paisagem que se afigura como um valor humano - construção conjunta do homem. Terra no sentido mais amplo, de alma e chão, tema  para quem vive/viveu a sua própria terra, o solo de seu espírito. O escritor, no processo criativo de mitos e de cultura, integra-se no cenário paisagístico, amalgamando-o  na força de seu imaginário. O historiador Simon Schama lembra, no livro Paisagem e Memória, que "a identidade nacional perderia muito de seu  fascínio sem a mística de uma tradição paisagística particular: sua  topografia mapeada e enriquecida como terra natal".

Paulo Gustavo, poeta e ficcionista, no ensaio sobre o livro  Nordeste de Gilberto Freyre, publicado na revista Arrecifes, afirma que o mestre de Apipucos trabalhou com elementos cósmicos: a terra e a  água, dinamizando a nossa imaginação para além dos dados geográficos. Descobriu o poder sedutor do massapê: "terra pegajenta, melosa, garanhona, que parece sentir gosto em ser pisada e ferida pelos pés de gente, pelas patas dos bois e dos cavalos". O massapê que favorece a criação - sementeira de vida vegetal.

No dizer de Gaston Bachelard, "todos os grandes sonhadores  terrestres amam a terra, venerando a argila como a matéria do ser". O pré-socrático Xenófanes, cinco séculos antes de Cristo já afirmava: "tudo  vem da terra e na terra tudo termina". Bem antes, nos versos de Homem em que diz: "mas que vós todos em águas e terras vos torneis".

Os intelectuais de modo geral se preocupam com as relações do  Homem com o meio físico, sua  adaptação às condições climáticas, reconhecendo a importância da paisagem: florestas, rios, lagoas, planaltos, vales, ventos, sol, luz do luar, céu, chuva, árvores, flores, neve, pedras e montanhas, tudo influindo na maneira de viver e na elaboração dos textos literários.

A natureza em seus  caprichos de fêmea vaidosa assume nuanças variegadas. A roupagem se transmuda assumindo cores e encantos imprevistos. Mário Matos, em seu livro Quarentena, conta que "Antes do entardecer, a tempestade rebentou. O céu baixar e Garanhuns subir até ele. Quase se juntavam. Imersa nas sombras, as ruas transformaram-se em ribeiros. Durou pouco. Um vento uivante vinha do Alto da Boa Vista. Entreabriam-se as nuvens e o firmamento  mostrou-se de um azul puro, filtrando os tons rubros de um sol que se  punha. A cidade inteira luzia, fresca, lavada. Dois jardins vinha um  perfume de bogari, jasmim-laranja e resedá".

De Garanhuns, com aroma de eucaliptos e rosas, minhas lembranças infantis. Os caramanchões da Praça da Bandeira, - agora Praça Monsenhor Adelmar da Mota Valença - se enfeitando de cores na  espera festiva do desfile. Os tambores repetindo as batidas secas e fortes. O som metálico das cornetas coordenando os movimentos. Os  alunos do Colégio Diocesano de Garanhuns, perfilados e garbosos, marcham pelas ruas centrais da cidade.

As lembranças paisagísticas retrocedem aos tempos mais distantes. O verde das matas, com matizes de amarelo e vermelho dos ipês e das acácias, confundindo-se com o céu de puríssimo azul. As cachoeiras cantantes, ébrias de espumas, onde se banhavam ninfas caboclas de cabelos negros colados aos corpos molhados. As águas límpidas do  rio Piranji que se adornam de baronesas nas épocas de chuva. As festas padroeiras com quermesses, paus-de-sebo, alvoradas, zabumbas, buscas de mastro, coretos, bacarás, roletas, pastoris, bumbas-meu-boi e procissões. Repique de sino chamado para a missa. Carrosséis que  rodopiam sonhos de criança na singeleza dos cavalinhos de madeira. A tristeza e o imobilismo das semanas santas quando as imagens se cobriam de fazenda arroxeada e, nos pequenos oratórios domésticos, envoltas em crepe e seda. Fragrância de velhos engenhos suavizando o  soluçar das juritis. Tempo de azul e não. Sangram mulungus no ermo  encantado. Os pássaros nostálgicos waldemarianos vão com as asas trêmulas aflando na viração da tarde, modelando nas nuvens figuras mitológicas, enquanto voga no céu, como uma caravela de fogo, o sol do acaso. Suas longas asas retesadas captam a poesia da tarde fugitiva, mas eterna no instante em que foi bela. Os carros de boi, em mós de  atrito, as raízes da terra triturando. Tímidos passos de criança amortecidos em lágrimas de memória e que se perdem nos encantos da noite,  nos segredos da vida e nos mistérios da morte. Ricos cenários para  poetas e prosadores.

Waldênio Porto inicia seu romance quando se cobrem de verde as baraúnas com força descritiva: "A água da chuva escorre encorpada pelas telhas e despenca do beiral irregular, feito cortina líquida. Cava, com estrépito, poças no chão de barro. Juntam-se e engrossam a corrente, frente às casas, descambando barulhenta pelas ladeiras, a caminho do rio."

José Saramago, único escritor de língua portuguesa a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, mantém um diálogo filosófico entre as  duas personagens principais do Memorial do Convento, sua obra prima, lançando mão de imagens paisagísticas - nuvens, chuva, céu, montes, colinas, moinhos, vento, sol, sombras -: "Vão Blimunda e  Baltasar a caminho de Lisboa, ladeando as colinas onde levantam moinhos, o céu está encoberto, mal saiu o sol logo se escondeu, o vento é do sul que vem, ameaça muita chuva, e Baltasar diz: Se começa a  chover, não teremos onde recolher-nos, depois levanta os olhos para  as nuvens, é uma única placa sombria, cor de ardósias; Se as vontades são nuvens fechadas, quem sabe se não ficarão presas nestas, tão escuras e grossas que nem o próprio sol se vê por trás delas, e Blimunda respondeu: Pudesses tu ver a nuvem fechada que dentro de ti esta  Ou de ti, Ou de mim, pudesse tu vê-la, e saberias que é bem pouco uma nuvem do céu comparada com a nuvem que está dentro do homem".

De Josué Montello, a mesma influência paisagística em Noite sobre Alcântara - "O inverno se despedia. Dentro de mais alguns dias, o período das grandes estiagens, de sol firme, de noite límpidas, e a cidade a refulgir na claridade das manhãs altas ou a recortar na luz do luar os seus sobrados, os seus mirantes, as suas sacadas, os seus  portais de pedra".

Joaquim Cardozo, em Congresso dos Ventos, poema símbolo das vozes da humanidade, reúne na várzea do rio Capibaribe, os mais  ilustres ventos da Terra. Ventos que têm a missão de unir os homens de todos os quadrantes por meio do intercâmbio cultural. Mistral foi  o primeiro a chegar, "com seus cabelos de agulhas e os seus frios dedos finos". Em seguida, Simum, com suas "barbas de areia quente". Todas as ações humanas são atribuídas aos ventos: conversar, dançar, respirar, contar histórias de feitos guerreiros. Encerrado o Congresso, os ventos erguem-se em alto voo e voltam às suas plagas de origem. O que saiu por último foi o vento Aracati, do Ceará: 

Cortou uns talos de chuva

Com eles fez uma flauta

E se foi, tocando e dançando.

Guilherme de Almeida, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, descobre o espírito brincalhão do vento que se diverte com as folhas dançantes e a capacidade consoladora da natureza que mitiga dores e reintegra o homem ao mundo vegetal. Seguindo o conselho do poeta, quando você precisar maldizer as feridas da vida,  vá sentar-se ao banco dessas praças solitárias em que há árvores idosas sob o céu sem fios. E fique ai um tempo longo. E olhe para uma dessas árvores pensando: mas tão perdidamente , que o seu pensamento tome  a forma dessa árvore...

Neve. Montanha. Ventos frios. Céu mutante no imaginário de  Cecília Meireles.

"Um dia, a neve surpreendeu-me na montanha. O céu estava azul, a paisagem estendia-se imensa e tranquila. De repente, as centelhas de neve começaram a luzir daqui, dali, como vagalumes de prata. A neve caía, cada vez mais densa, e logo os telhados e as árvores foram ficando brancos, e o céu perdeu sua cor, não houve mais horizonte, a  paisagem era uma enorme folha de papel com breves linhas e pontinhos negros, tal uma gravura com sucintas indicações de vales,  povoações, estradas...  Os ventos frios do sul!... Amada neve!"

Cesário Verde nos fala de terrenos escorregadios por onde deslizam os laranjas:

O laranjal de folhas negrejantes

(Porque os terrenos são movediços)

Desce em socalcos todos os maciços,

Como uma escadaria de gigantes.

Na paisagística da produção literária é frequente o surgimento de  pedras.

Se pedras tapetes, diríamos que os caminhos da literatura aparecem floridos pela tessitura dos artistas. Amaciando passos ou dificultando o caminhar. Na imaginação criadora dos escritores, o fascínio das pedras. Encontramo-las de todos os tipos e coloridos. Drumonianas que atrapalham o viajante, autofágicas, sonhadoras, severinas molhadas de suor, preciosas, sóis a brilhar ou testemunhas de sangrentos rituais. Pedras título.

Terra cansada de procriar. Pedras molhadas de suor. João Cabral de Melo Netto. Morte e Vida Severina.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na sina:

a de abrandar estas pedras 

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar

algum roçado da cinza.

Pedra que sonha e que faz sonhar, adormecida no eterno sono. E porque a pedra é feliz? O esquecido poeta olindense José Mindello nos  dar a resposta no livro À Sombra das Árvores, prefaciado por Waldemar Lopes. No abandono em que jaz, muda, sombria,

um sonho doce embala o seu mistério...

Dorme, feliz, o Grande Sono - altera-o

embora a voz dos ventos, fugidia...


A alma da Noite, desce lenta e fria...

Desce... Envolve-a em seu manto escuro e etéro

e a pedra sonha... E o espírito sidéreo

da Noite beija-a em vão e a acaricia...


Nada a interrompe em seu torpor silente:

de reviver no Tempo eternamente

podem arder os homens na ânsia imensa...


Que no silêncio augusto do abandono,

jamais despertará do eterno sono

a pedra que é feliz - porque não pensa!

O poeta Austro Costa, nos lembra a Pedra de Bolonha:

Diz-nos Goeth que a pedra de Bolonha,

exposta à luz solar,

tanto os raios lhe furta, e absorve, tanto,

que fica luminosa, e, à noite, há quem suponha,

cheio de espanto,

que ela é um sol a brilhar...

Pedras preciosas. Joaquim Manuel de Macedo, o médico que resolveu ser escritor, enfeita passagens de A Moreninha com a esmeralda e o camafeu. O processo extrativo de diamantes inspira a obra Cascalho de Hebert Sales, membro da Academia Brasileira de Letras.

Pedras títulos. Aquelas que se juntam, se agrupam, num octossílabo perfeito no verso de Marco Pólo Guimarães - "Somos pedras que Se consomem" e que Raimundo Carrero escolheu como título de um de seus mais belos e originais romances cujo tema é o tempo que passa inexorável como nós também passamos, "pedras que se consomem".

Da coletânea A Educação pela Pedra de João Cabral de Melo Netto - os poemas devem ser trabalhados de forma rigorosa e sistemática para obterem a consistência e a resistência de uma pedra. Depuração poética. 

Imagem de pedra, livro de poesias de Lucilo Varejão Filho, membro da Academia Pernambucana de Letras e organizador da coletânea "Os velhos mestres do romance pernambucano".

E a mais preciosa de todas as pedras - octogenária, rubro-negra, coberta de realeza, cansada de homenagem, que num riso largo e festivo se ergue altaneira nas serranias de São José do Belmonte. Dela o  misterioso nascimento de Quaderna - nosso Dom Quixote sertanejo - que pinta e borda em terras secas dos Cariris Velhos da Paraíba do  Norte, nos lajedos e serrotes, no topázio castanho e rude dos prados. Pedra real que será homenageada hoje à tarde neste Festival e amanhã desfilará gloriosamente pelas ruas da cidade.

Minha homenagem final ao professor Manoel Corrêa de Araújo - geógrafo, historiador, economista, antropólogo, escritor com mais de  100 livros e 300 artigos publicados, membro da Academia Pernambucana de Letras e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, recentemente falecido. Seu livro A terra e o homem do  Nordeste, publicado em 1963, foi considerado pela Câmara Brasileira do Livro como uma das 100 melhores publicações do século passado. Leonardo Dantas descreve-o muito bem: "espírito de luta, capacidade de reação, disposição para o trabalho, desejo de conciliação, procura de progresso, de choque de ideias e de realizações". Daquelas personalidades que servem para guiar um povo, para mostrar caminhos. Saudades!

*Amaury de Medeiros, médico, membro da Academia Pernambucana de Letras, ensaísta, colaborador de jornais e revistas científicas.

Conferência de Amaury de Medeiros no II Festival de Literatura de Garanhuns - FLIG, realizado de 5 a 8 de julho de 2007.

Foto: Amaury de Medeiros.

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