quarta-feira, 19 de junho de 2024

A Família Gueiros no início do novo século


Latifundiária no século dezoito, com terras em Buíque e Águas Belas, e beneficiada pela venda de sua produção agrícola para Bahia e Minas Gerais, durante a corrida do ouro, a família viu sua fortuna retroceder, em função da subdivisão múltipla das terras, de geração em geração, e pela eventual mudança da economia mineira, que não mais dependia da importação de mantimentos trazidos de fora.

No caso específico de Francisco de Carvalho Silva Gueiros, como já visto, outros problemas de ordem política e pessoal levaram-no a uma posição econômica e financeiramente difícil, no final do século dezenove. A modificação dessa posição difícil, na qual a família caíra, ocorreria com sua conversão ao Evangelho, e aceitação de toda a ética protestante - exigindo o abandono dos vícios da bebida e do  fumo, dos divertimentos mundanos constantes, e uma dedicação total ao trabalho e à educação. A escola foi o instrumento principal da redenção social e econômica da mesma, no século vinte.

As igrejas evangélicas, como se sabe, fundamentam seus ensinamentos através da leitura diária da Bíblia. Seus membros são não apenas exortados, mas também obrigados a mandar educar os filhos, como fez lembrar, recentemente, o professor Nilson de Oliveira, em artigo no jornal Brasil Presbiteriano. "Até hoje", lembra o professor Oliveira, "nossos pastores, quando recebem uma criança ao batismo, uma das perguntas que fazem é: "Prometeis que se  Deus for servido, de conservar a vida dessa criança a educareis para que ela, por si mesma, possa ler a Bíblia Sagrada, a Palavra de Deus?" (BP, agosto, 1998).

Essa educação vai sempre muito além de uma simples aprendizagem, que permita ao fiel a leitura da sua Bíblia. No entanto essa aprendizagem mínima leva todos a aspirar maiores conhecimentos. Assim, a educação das primeiras gerações de conversas desta família, ocorreu dentro da própria igreja, bem como na escola paroquial do pastor Martinho de Oliveira, no Colégio 15 de Novembro, no Seminário Evangélico de Garanhuns, e/ou no Colégio Evangélico Agnes Erskine, no Recife.

Foram três os primeiros Gueiros a se educarem no Seminário Evangélico de Garanhuns: Jerônimo da Silva Gueiros, Antônio de Carvalho Silva Gueiros, e, cinco anos mais tarde, o sobrinho de ambos, Antônio Teixeira Gueiros.

Antônio Gueiros, o mais velho dos dois irmãos, em seus primeiros anos de vida estivera tão enfermo que a família chegara a duvidar da sua sobrevivência. Mesmo tendo sobrevivido às enfermidades da infância, foi sempre pessoa de saúde frágil e um aluno um tanto "vagaroso", na expressão dos professores americanos. Entrou para o seminário já casado, e com muitas responsabilidades familiares, não lhe restando tempo suficiente para estudar e devidamente preparar as lições. Dr. George Henderlite esperava dele apenas que se tornasse um excelente "ruling elder", ou seja presbítero conselheiro da Igreja. Negando, porém, a profecia do americano, Antônio, apesar da fragilidade de sua saúde, tornou-se pastor e um incansável evangelizador dos sertões de Pernambuco e Alagoas, como será visto no capítulo sobre a sua vida.

Jerônimo Gueiros, o mais novo dos irmãos, o mais dinâmico e o mais inteligente de todos, liderou todo o grupo familiar, e em breve se tornaria um famoso pregador evangélico. Entre outras atividades, foi redator do jornal Norte Evangélico, diretor e professor do Colégio 15 de Novembro, professor catedrático de português e diretor da Escola Normal de Natal, Diretor da Escola Normal de Pernambuco, Diretor do Seminário Presbiteriano do Norte, Presidente da Academia Pernambucana de Letras e Secretário Perpétuo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. Provou ser mesmo um  "Pégaso", como descrevera o Dr. George Henderlite, em 1909. Símile àquele ser alado da mitologia grega, Jerônimo Gueiros voou alto, muito alto mesmo, para um rapaz sertanejo, que até aos 14 anos de idade mal tinha frequentado a escola. No entanto, com o passar dos anos, ele e seus filhos formaram como que uma espécie de poderosa "locomotiva", à qual se atrelou o restante da família.

Antônio Teixeira Gueiros, o sobrinho, foi também um jovem precoce e de inteligência privilegiada, que aprendera a ler e "fazer contas" entre os três e quatro anos de idade. dele se esperava tudo. De fato, sua carreira seguiu paralela à do seu tio Jerônimo Gueiros, e  se não se distinguiu tanto quanto este, a nível nacional, foi pelo fato de ter ido trabalhar naquela então chamada "região esquecida do Brasil", a Amazônia, em Belém do Pará, após a queda do mercado da borracha. Naquele quase que "país estrangeiro", para a maioria dos brasileiros, fez carreira brilhante, notícias da qual, naquela época tão carente de meios de comunicação, dificilmente alcançavam o  restante do Brasil.

Os outros, já bem mais velhos e casados, não tinham como continuar seus estudos, exceto dentro da igreja, na escola dominical. Essas escolas bíblicas evangélicas de doutrinação religiosa eram e ainda hoje são mais do que escolas de religião. Através delas os alunos não apenas estudam a Bíblia, mas também a história da civilização, conceitos teológicos e filosóficos, bem como a raciocinar e a falar em público, em frequentes debates sobre a Bíblia, democraticamente conduzidos por seu professores. Essas são também escolas de democracia. Ensinam e praticam, de primeira mão, o debate livre, bem como a importância do sufrágio popular, através da eleição dos pastores, presbíteros e diáconos da igreja. Mais ainda, nas igrejas evangélicas aprende-se a respeitar o fato de que qualquer membro daquela comunidade pode livremente orar em público, falar e expressar suas ideias, as quais eram e até hoje são ouvidas com respeito por todos, por mais humilde que seja o locutor. Essas  lições de democracia prática, só após um século de "republicanismo", na maioria das vezes ditatorial começam  a ser apreendidas e praticadas pelo público brasileiro em geral, como se as mesmas fossem uma grande inovação.

Em um Brasil com 86% de analfabetos, no começo do século XX, especialmente no sertão - e aqui utilizo o termo "sertão" no sentido antigo, definindo uma região afastada da capital, e não com o significado que os geógrafos hodiernamente dão a essa palavra. Nesse sertão, uma ignorância quase absoluta prevalecia. Em um país e região assim, tão carentes de educação, qualquer estudo e conhecimento, como o pouco conhecimento ministrado nas Escolas Dominicais, era suficiente para criar lideranças habilitadas.

Dessa maneira, habilitaram-se não apenas os homens da família, mas também as mulheres. Algo inusitado para aquela época, as mulheres nas igrejas evangélicas já igualavam os homens em direitos: fazendo orações em voz alta nas igrejas, lecionando na Escola Dominical, debatendo todos os temas pertinentes à igreja, sendo inclusive eleitoras, com direito a voz e voto nas eleições internas para pastor, presbítero e diácono.

Sob a influência dos ensinos conservadores do Apóstolo São Paulo, a Igreja Presbiteriana ainda não permitia a eleição de mulheres para o pastorado e cargos de administração. Isso, falando-se de jure, porque de facto muitas mulheres da família atuaram informalmente como "pastoras" e administradoras de suas congregações, especialmente no alto sertão, onde faltavam homens habilitados a pregar e a conduzir as igrejas.

E foram extraordinárias, as mulheres desta família, distinguiram-se não apenas no lar - como mães e donas de casa - mas também, conforme acima descrito, nas igrejas e nas comunidades onde viveram. Elas foram igualmente beneficiadas pela educação obtida na escola paroquial, nos colégios evangélicos, bem como da escola dominical.

Em consequência da educação obtida, os membros desta família começaram a mudar-se para outros lugares, como pastores e como profissionais de todos os tipos. Essa grande diáspora da família ocorreria no começo do século XX, e a ela dedico o restante deste capítulo.

Antônio de Carvalho Silva Gueiros mal terminara o seminário, em 1907, do Pará. Viajou norte, acompanhado de outro membro da família, o alferes João da Silva Gueiros, que abandonando sua carreira policial em Pernambuco, aproveitara a ida do irmão para tentar a sorte na Amazônia.

Antes deles, outro Gueiros já tinha ido ao Pará. É um desconhecido de todos nos, chamado Manoel Gueiros de Carvalho, provavelmente da descendência de Laurentino Gueiros, irmão de Francisco Gueiros "o velho". Talvez o pai de Antônio Gueiros de Carvalho, por muitos anos pastor da Igreja Presbiteriana de Palmares. O nome de Manoel Gueiros de Carvalho aparece como um dos fundadores da Igreja Presbiteriana de Belém do Pará, em 1901, tendo sido então eleito presbítero daquela Igreja. Aparentemente morreu em Belém, sem jamais ter regressado a Pernambuco (Norte Evangélico, 11/08/1928).

Antônio e João Gueiros regressariam a Pernambuco após a queda do mercado da borracha, porém por razões diferentes. João Gueiros voltou porque as condições econômicas do Pará entraram em colapso. Antônio Gueiros, em 1914, pediu para ser devolvido a Pernambuco por causa da saúde da filha mais velha.

Jerônimo da Silva Gueiros, após terminar seus estudos no seminário, em 1905, foi pastorear a Igreja Presbiteriana de Fortaleza, e  depois a de Natal, no Rio Grande do Norte. Voltou a Garanhuns, por  razões de saúde, onde laborou como pastor da Igreja Presbiteriana local, professor e diretor do Colégio 15 de Novembro, e redator do  Norte Evangélico. Mais uma vez voltou a pastorear a Igreja Presbiteriana de Natal, onde se tornou também professor e diretor da Escola Normal daquela cidade, tendo eventualmente retornado para Pernambuco, onde iniciou uma brilhante carreira no Recife, como pastor evangélico, professor de português, jornalista, literato e historiador, conforme será visto adiante.

Francisco de Carvalho Silva Gueiros Filho, atraído talvez pelo magnetismo do médico  missionário Dr. George William Butler, mudou-se definitivamente para Canhotinho, onde aquele  médico americano montara uma Igreja Presbiteriana e um famoso hospital, e onde Francisco Filho fora delegado de polícia na década de 1890. Naquela cidade, Francisco foi presbítero da igreja ali fundada pelo mencionado Dr. Butler. Em Canhotinho ele foi oficial de justiça e "juiz de pequenas causas", escolhido informalmente pelos próprios sertanejos, como afirma seu neto, o ministro Evandro Gueiros Leite.

Clarindo Barbosa Silva Gueiros casou-se com Tereza de Azevedo, septeneta de Jorge Velho, e mudou-se para Canhotinho, a convite do Dr. George W. Butler, onde montou uma pensão para hospedagem dos pacientes daquele médico americano, que vinham de  todo o estado de Pernambuco e dos estados vizinhos. Ficou a tradição, entre seus descendentes, que Tereza de Azevedo atuou. A pensão permaneceu e tomou status de pequeno hotel, nas mãos de Arcelina e Borba Gueiros, que o administram por várias décadas.

As filhas de Francisco Gueiros e Rita Francisca Barbosa casaram-se todas elas, deixando numerosas proles: Josefina Gueiros casou com Joaquim Ferreira de Noronha Branco, de Garanhuns; Amélia Gueiros casou com o coronel João Malta, de Águas Belas, Pernambuco, tendo ido então morar naquela cidade; Anália Gueiros casou-se com o primo Soriano Souto Furtado, de Garanhuns, onde morou por  muitos anos, indo depois para o Recife e Rio de Janeiro; Maria Gueiros casou-se com Evaristo Athaíde de Almeida, e Francisca da Silva Gueiros com Alfredo Teixeira Calado.

Enfim, a maioria da família entrava no século vinte já bem estruturada, com uma nova perspectiva de vida baseada numa visão evangélica, calvinista, de que todos são chamados para servir a  Deus, não apenas na igreja, mas também nas atividades ditas mundanas. Se anteriormente não tinham um rumo muito claro e muito certo, agora encetavam uma grande jornada, com esse propósito em mente: servir a Deus. E isso fez uma grande diferença para o futuro da mesma.

Fonte: Trajetória de uma Família - A História da Família Gueiros / David Gueiros Vieira / Primeira Edição - Julho de 2008. Acervo: Memorial Ulisses Viana de Barros Neto.

Foto: Década de 1970 - Sítio Baixa da Lama, Brejão - PE - Da esquerda para a direita: Seu Alcides e José Gueiros da Silva (conhecido por Zé Laurentino que está de chapéu), filho de Laurentino Gueiros da Silva. Zé Laurentino bisavô de Anchieta Gueiros. 

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