Tem início aqui o personagem, que é igual ao livro e à Avenida onde tudo ocorre. Romance inédito, não publicado em livro
João Marques | Garanhuns
Hoje é avenida. Presente e complexa. enquanto se compatibilizam tempo e espaço. Eu, andando... a Avenida também, com os passos que não a afastam. Sempre. Não, nos desvios de quando lhe machucam a flor. Ela imita ou tende ao caminho dos meus olhos, do meu fôlego, que respira os ares de casa. Os personagens ainda, do espaço e do chão da vida. Vivemos na Avenida, e todos não se encontram nas andanças. Há esquinas por todo o canto, e desencontros. Eu, porém, acompanho todos. Indo e, como quero, vou vendo os transeuntes.
Amigos, e pessoas que nem me conhecem. Se muito, sabem o nome e algumas informações de mim. Aparência, roupa, e para qual lado vou, certamente. Não sabem que voltarei, que carrego aqui, dentro do ser, a busca. E que as pernas nem sempre atendem. Mas é preciso andar, com, o peso do corpo e com a vontade cerceada por muitas coisas. Conflitos em muitas direções e na paisagem que vejo. E todos estamos nela e não apenas as árvores, as casas, os céus e o vento. O quadro é medonho, se todos são vistos inteiros por dentro e por fora. E pedaço de não ser melhor conhecido interiormente.
Aceno para uma pessoa e ela não corresponde. Não me vê ou não tem tempo para cumprimentos. Outra, diferente, é quem acena e se aproxima. Conta rapidamente que se espalhou notícia de sua morte. Mas não, quem morreu foi outra pessoa, o Matusalém... "Muito parecido comigo" O dia todo, a Avenida é palco de cenas. Campo de episódios bons e ruins. Outras vezes, é só o que acontece de agradável ou não em um sonho; e entendo que seja o desdobramento do conto fantástico da vida. Ou não sei, e escrevo por isso, para afirmação do personagem e da história que conta. Meu drama - eu tenho um drama - se inova na tarde. E nunca passa o ensaio. Assim considero. E tenho dúvidas, daí, se sou o único protagonista de tudo. Com o que penso, tenho certeza. Eu sou. E penso e vejo em função da existência da Avenida. E ao contrário da Literatura, meu personagem é quem me descreve aqui. Um sujeito que se faz de ator todo tempo. Autêntico no que é ou que demonstra ser. Gesticula e age. Admite o personagem que sou filósofo e me mexo como qualquer outro animal. Personagem maior é a Avenida, contudo. Pantomímica em seus movimentos humanos. Dramático nos diálogos manifestados, do vulgo ao douto. Nem sempre obedece aos traços das mãos escreventes. Rebelde, às vezes, tanto quanto os Bacanas, os vilões da história. Outras vezes, ela se mostra com a inversão do tempo, que é admitida.
Na manhã de começar o livro, a primeira pessoa do dia e da Avenida é Limeira. Parado num canto e inconfundível. Quem passa, olha. Não move as pernas, sustentando o corpo agora meio curvado, e a cabeça. Concentrado e imóvel. Justifica as suas paradas bruscas. De pé e quieto, enquanto pensa, pode encontrar a solução do mundo. Comportamento e atitudes excêntricos. Ele, entretanto, desconfia às vezes do desvio que tem , e não encontra outra forma de viver. Não o vejo como vê. Tem-me como uma pessoa especial, com qualidades. Não é mau. Amigo, por quanto lhe permita a mente perturbada. Acredita pode melhorar a vida numa mágica. Parado, assemelha-se a um monumento. Tem certeza de que as estátuas pensam por toda experiência que tiveram os homens mais ilustres.
- Limeira! - digo em voz alta. E ele, se bolindo imediatamente, em saudação responde.
- Herói!
- Marcos! replico, só Marcos em vez de Marcos de Safo.
É costume de Limeira tratar-me de "Herói".
É tanta a admiração por mim, que quase me eleva nos seus braços. Em todo o encontro, é a mesma coisa. Manifesta-me as fixações do pensamento e alucinações bondosas.
O tio veio fazer uma visita. Trouxe alimentos e roupas para os dois irmãos. Moram sós. Limeira e Sávio. O segundo, meu amigo também. É poeta. Limeira fala mal do irmão. Queixa-se de que ele fala muito e não sabe viver. Hábitos e assuntos do outro são diferentes. Limeira é magro e alto. Veste traje completo, com paletó e gravata. Exibe sempre, presa logo acima do bolsinho superior do paletó, palha ou casca seca de algum fruto. Está usando agora uma de maracujá. Sapatos engraxados e tudo muito limpo. Os cabelos despenteados. É bastante conhecido na Avenida e todo o mundo respeita a sua figura.
Ciganos surgem e armam acampamento sob árvore da Avenida. Chegam montados em burros, com arreios dourados e as fivelas de prata. Vestes de muito pano, estampadas e em cores vistosas. Abas longas dos chapéus dos homens. As mulheres de cabelos compridos, saias longas, e cheias de colares e anéis. Falam com todo o mundo, atraindo as atenções. Nômades, vivem assim meio perdidos. E não são diferentes que todos caminhando em sentidos contrários. E se encontram em várias direções, como eu próprio.
Os estudantes passam, num protesto contra a alta do preço dos ingressos do cinema. Muito barulho, tambores, cornetas, apitos. As gargantas fortes e estridentes. Vaiam a gritam palavras de ordem: Contra a exploração... Cinema caro, não! Camisas vermelhas, cabelos compridos e as calças americanas, que surgem na manhã. Fazem discursos, com movimentos dos braços ajudando. Alguns usam máscaras ou fantasias improvisadas. Duas bandeiras sendo agitadas. A bandeira do Brasil e a da agremiação estudantil. Panos coloridos sendo sacudidos no espaço. À frente do grupo, líderes estudantis conhecidos caminham e acenam ao povo. Outros conduzem fotografias ampliadas, de artistas. Três ou quatro representando grandes estrelas do cinema. Chama mais atenção um Charlie Chaplin com a bengala, os sapatos grandes e o andar engraçado. Muita gente aplaude. Fico atento, para ver se Eloim, outro amigo, está entre eles. Não está. Desperta-me a atenção outra coisa. Um homem de barbas compridas e pretas, velho, carregando uma bandeja cheia de ossos de animal, embranquecidos e secos. Passam.
*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor. Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.
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