quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Belisa e Doroteia

João Marques

João Marques* | Garanhuns

Ah  como os meus 5 anos se lembram tanto de mim. Ia para os Barreiros, outro sítio, dos meus avós, distante uma duas horas de caminhada. E, quase na  chegada, era a casa de Belisa e Doroteia. A  lembrança que tenho é que estavam sempre à janela. Duas irmãs idosas, morando sós em  uma casinha. Só e desolada, à beira do caminho de pouca gente à vista. Toda a vez que eu  passava, a lembrança é de que me esperavam e ficavam muito alegres. Falavam as duas as mesmas coisas, iguais, pelo reencontro feliz. Como ficavam alegres comigo! Diziam meu  nome num diminutivo carinhoso. Impressionante. Verdade é que  não sei se morreram, como viviam, o que pensavam. Isso sim,  que estavam sempre à janela.

Nunca soube de quem eram parentes, que escolaridade tinham, nada, duas mulheres sorrindo e me tratando carinhosamente. Passagem inesquecível. Não mais outras Belisa e  Doroteia, pela vida que seguiu. Só elas, como um encanto a mais da infância. Possivelmente, na vida, muita gente como eu guarda lembranças de encantamentos. Há sonhos que ficam, passagens da existência que nunca passam da mente. Muitas vezes, pode não chegar a um encanto, mas a um acontecimento de tal emoção, que não mais é olvidado. As lembranças boas são bem vindas sempre. Poucas, assim, fantásticas, que vêm e ficam, para tornar mais agradável a vida.

Belisa e Doroteia, encantadas, não se acabam. Fico passando sempre outras vezes diante da janela, e elas estão lá. Tão felizes comigo, que são duas santas. E, sabe, penso às vezes na possibilidade de não terem existido. Nem elas, nem a janela, nem a casinha. Só a passagem. Teria sido um sonho de repetidas vezes ou uma lembrança perdida da existência oculta... alguma coisa. Mas  me vem a convicção de  que somos todos meios eternos. Enrolado de nuvens, o homem nunca desistiu de pensar em ser também do espaço. E pedaços da eternidade passam pelo homem muitas vezes, e ele não percebe, ocupado em estar sempre medindo as coisas. Quanto a mim, eu sei que, ao menos isso, Belisa e Doroteia são minha porção eterna. 

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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