terça-feira, 25 de julho de 2023

David Gueiros Vieira

David Gueiros Vieira
Professor, conferencista e um dos maiores especialistas brasileiros em História da Questão Religiosa do Brasil. PHD em História da América Latina pela American University em Washington, DC, e Mestre pela Universidade de Richmond, na Virgínia. Considerado pela extensão e profundidade de suas pesquisas, um dos maiores especialistas brasileiros na área de História de questão religiosa do Brasil.

LIVRO TRAJETÓRIA DE UMA FAMÍLIA: A HISTÓRIA DA FAMÍLIA GUEIROS

Neste livro, o Professor David Gueiros Vieira traça a história da Família Gueiros. Desde suas raízes coloniais, mostrando como esta família participou de alguns eventos cruciais da história do Brasil.

A Inquisição e seus horrores começa em Portugal, sob pressão do Rei da Espanha. Para poupar sua sobrinha e aia, a Rainha D. Catarina a manda para Pernambuco. Séculos depois, na Revolução de 1930, um descendente dessa menina, Optato Gueiros, trava batalha com os revolucionários, até  a última bala, em defesa do Palácio do Governo de Pernambuco. Seu primo, Ruben Gueiros, saia a cavalo, pelo sertão afora, tentando salvar um cunhado que fora aprisionado por Lampião. Alguns anos depois, Nehemias Gueiros eleva o Primeiro Ministro Winston Churchill, da Inglaterra, a "Cavaleiro da Ordem dos Jagunços".

O livro escrito por David Gueiros Vieira está repleto de histórias interessantes sobre esta família. De bárbaros colonizadores, transformaram-se em evangelizadores e profissionais liberais, tendo suas atividades se expandido por todo o Brasil e por outros países.

“Na casa de Meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, Eu vo-lo teria dito; pois vou preparar-vos lugar. E se Eu for e vos preparar lugar, virei outra vez e vos receberei para Mim mesmo, para que onde Eu estou estejais vós também.” ( Jo 4: 2-3 ).

Contudo, sua paixão mesmo sempre foi a História Familiar, que ocupou o espaço principal do seu interesse sobre os eventos do passado. Assim ao longo de sua vida acumulou documentos e anotações sobre a Família Gueiros. Ao se aposentar, em 1996, passou a utilizar todo esse acervo para escrever a história dessa família. David Gueiros Vieira nasceu em 12 de setembro de 1929. Faleceu em 30 de novembro de 2017 em Brasília - DF, aos 88 anos.  

Foto: (1) - Professor David Gueiros Vieira (2) - Livro Trajetória de uma Família - A História de Família Gueiros.

Resenha do livro: O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil

Neste importante estudo, Davis Gueiros Vieira, PhD em História da América pela American University (Washington, DC) e professor aposentado da Universidade de Brasília, registra de forma esclarecedora a participação dos protestantes na chamada Questão Religiosa, resumidamente entendida como conflito entre católicos ultramontanos e a maçonaria na segunda metade do século XIX. Partindo de 1850, o autor apresenta os antecedentes dos fatos que, sem dúvida alguma, foi o mais duro conflito entre a Igreja e o Estado do século XIX. A presente obra foi fruto de dez anos de pesquisa para a tese de doutorado defendida em 1973 (p.11), destacando-se pelo forte caráter empírico. A apresentação da obra é feita por ninguém menos que Gilberto Freyre que, em 1978 afirma:

Sob essa perspectiva estaria ocorrendo uma cientifização do estudo histórico: isto é, do seu método ou dos seus métodos. Dos modos de pesquisa. Dos de ordenação e apresentação do material reunido. Mas sem que essa relativa cientifização de métodos venha importando no repúdio ao estudo histórico como literatura ou como arte. (p.8)

Baseando-se em documentos como os dos Anais da Câmara e do Senado, do Arquivo Nacional, da Biblioteca Nacional, do National Archives (Washington) e do Archivio Segreto Vaticano (Roma), além de outros arquivos de instituições religiosas no Brasil e no exterior, David G. Vieira nos mostra como a Igreja Católica estava em uma situação precária no período da Questão Religiosa. Politicamente enfraquecida pelo “uso e abuso do direito do padroado”, economicamente dependente de “côngruas mesquinhas” e com um clero “envolvido em política” e sendo acusado de “violador do celibato” (p.27), a Igreja teve que enfrentar a ameaça de invasão protestante, a maçonaria e o Estado. A priori Vieira apresenta duas hipóteses para a Questão Religiosa. A primeira, baseada na tese de Dom Antônio de Macedo Costa e do Arcebispo da Bahia, Dom Manuel Joaquim da Silveira, é a de que “grupos religiosos americanos... formavam a vanguarda treinada e consciente do imperialismo americano” com interesses na Amazônia (p.11); a segunda “presumia ter havido uma conspiração liberal, de âmbito universal, para destruir a Igreja Católica romana e que a maçonaria fora utilizada como arma para este fim” (p.11). David G. Vieira investiga e descarta tais hipóteses. Para ele a Questão Religiosa foi provocada por vários fatores, entre eles a luta pelos direito de culto dos não católicos e a defesa de seus direitos civis, além da consolidação do liberalismo.

O autor dedica grande parte da obra ao estudo dos vários grupos protestante estabelecidos no Brasil no século XIX. Considerados uma “espécie de enigma” pelo fato de serem heterogêneos, dividiam-se em: luteranos, anglicanos, metodistas, congregacionais e presbiterianos. Com ideologias diferentes, esses grupos, por serem minoritários, uniram-se entre si e também com outros grupos não católicos em defesa do direito de culto no Brasil.

Dividida em quatorze capítulos, a obra tem pelo menos cinco dedicados aos principais missionários protestantes e sua ação no Brasil. Nos capítulos três e quatro o autor nos apresenta uma considerável biografia de James Cooley Fletcher, americano, protestante e “expositor das Sagradas Escrituras” (p.81) que fez muitas amizades importantes no Império, inclusive com D Pedro II. A idéia de progresso, tão cara à maioria dos intelectuais do período, era frequentemente associada ao protestantismo, por isso Fletcher está sempre ligado aos maçons e liberais conhecidos como “amigos do progresso” (p.83). Além de Fletcher, o autor dedica o capítulo seis ao congregacional Robert Reid Kalley. Conhecido como “médico herético calvinista que estava ‘pervertendo’ o povo de Madeira”, Kelley foi perseguido pela “horda do populacho... encabeçada pelo Governador” da Ilha e saiu de lá disfarçado de “uma senhora idosa e doente” (p.114), vindo depois para o Brasil, onde também foi duramente perseguido. Os capítulos oito e nove são dedicados ao escocês Richard Holden, ministro episcopal que agiu no Pará e na Bahia publicando textos bíblicos e sermões em jornais. Uma reação interessante às publicações de Holden foi a elaborada pelo Bispo do Pará, Dom Antônio Macedo Costa, que em 1861 fez circular uma Pastoral “anti-protestante” advertindo seus vigários contra o “monstro da heresia” e suas “falsas bíblias” (p.182). Mais tarde o missionário destacou em seu diário que o bispo considerou que ele “[Holden] estava perdendo tempo em Belém, pois que o povo do Pará não pensava. “Nem mesmo seus clérigos pensavam e ele estava perplexo sem saber o que fazer com eles”, assim registrou o escocês.” (p.185)

Tavares Bastos, deputado liberal, amigo de Fletcher e considerado o “apóstolo do progresso” (p.95) também recebe atenção especial no capítulo cinco. O autor nos apresenta vários sub - capítulos onde trata de personagens que foram importantes para a maçonaria, o protestantismo e a defesa do catolicismo ultramontano, essas pequenas biografias certamente causam bastante incômodo para quem não pretende se aprofundar no tema, em função de constituírem-se interrupções à narrativa. Porém são fundamentais para entender principalmente o protestantismo, tema ainda hoje pouco explorado pela historiografia.

Vieira nos mostra como a dita Questão Religiosa foi bastante mais ampla do que a falta de entendimento entre os bispos de Olinda e Pará e a maçonaria, o autor apresenta o tema como o confronto entre o liberalismo e o ultramontanismo no Brasil. Dentro deste quadro, os liberais e maçons foram vistos pelos ultramontanos como aqueles que pretendiam “protestantizar” o Brasil (p.373). Para influenciar a imigração, os liberais colocaram em questão temas irredutíveis para o catolicismo como o casamento civil e a liberdade de culto, imprescindíveis para o favorecimento da vinda daqueles considerados como “a raça mais apropriada para nós [brasileiros]... laboriosa, empreendedora, e perseverante” (p.234).

Tratando majoritariamente da inserção dos protestantes no Brasil e seus principais expoentes, a presente obra tornou-se um marco para o estudo do protestantismo brasileiro do século XIX. Dificilmente encontraremos trabalhos sobre esse período e tema (ainda que sejam pouco estudados pela historiografia atual) em que esta obra não conste na bibliografia. Com exceção das obras oficiais das igrejas protestantes apresentadas, O Protestantismo a maçonaria e a questão religiosa no Brasil é uma das poucas, senão a única que nos apresenta esse grupo que tanto cresce em nosso país, de uma maneira empírica e resultante de pesquisas sérias. Analisando os trabalhos publicados sobre o tema e a importância dada à obra de David Gueiros pode-se destacar O celeste porvir de A.G Mendonça, além das inúmeras teses e dissertações, a exemplo da tese de doutorado da Professora Elizete da Silva na Universidade de São Paulo em 1998 que trata dos anglicanos e batistas na Bahia. Por fim, décadas depois de sua publicação, a obra de Vieira continua sendo um importante marco para o estudo do protestantismo. Apesar do título do livro ser muito mais abrangente, pode-se afirmar que poderia se resumir a um título que enfatizasse a inserção protestante em nosso país. Por esse motivo, tal obra se constitui como leitura indispensável àqueles que pretendem aprofundar-se no tema.

Fonte: http://www.nehscfortaleza.com/index.php/artigos-cient%C3%ADficos/itemlist/user/814-david-gueiros-vieira.html

Escravos e Nordestinos na Guerra do Paraguai

David Gueiros Vieira

Uma questão sempre suscitada quando se fala da Guerra do Paraguai é a participação dos escravos e de populações menos favorecidas como os nordestinos..  Aliás, o tema da Guerra do Paraguai ainda não apresenta uma conclusão satisfatória, acreditando-se que o perdurar do conflito deveu-se a insistência de D. Pedro II em não encerrar o confronto e as próprias medidas estratégicas e insanas tomadas pelo próprio Solano López, dentro do Paraguai, exaurindo a sua terra e a sua gente. Grande parte, e para alguns estudiosos, a maioria dos soldados brasileiros  naquela guerra eram de origem africana. Isto sempre me era mencionado por alguns dos meus colegas historiadores paraguaios, em Washington.  Quase em uníssono afirmavam que no Paraguai, nos quadros retratando cenas sobre aquela guerra, os soldados brasileiros sempre aparecem como negros, e alguns deles me perguntavam a razão.

Naquela época eu ainda não tinha lido  sobre a ligação existente entre o recrutamento para a luta contra o Paraguai, a escravidão e o morro do Antônio Favela, e não tinha, portanto uma explicação cabível para lhes dar. Tampouco levantei a questão do recrutamento nordestino.  Depois, lendo a correspondência dos missionários presbiterianos, que começavam a chegar ao Brasil - depois da guerra civil nos EUA (1860-1865) -  li que as mães brasileiras, aterrorizadas com a ideia de os filhos partirem para a guerra, mandavam-nos para as "montanhas de MG e São Paulo, ou para lugares longínquos", onde o exército não os poderia encontrar. Na época não havia convocação, assim os soldados saíam pelas ruas, apanhando os jovens, e obrigando-os a se alistarem, de acordo com a correspondência que analisei desses missionários americanos.

Especificamente com relação ao tipo de contingente para a Guerra da Paraguai, ou seja, a questão do recrutamento, não só os escravos integraram as forças brasileiras, mas os nordestinos, principalmente os cearenses. Segundo a historiadora cearense Luciara de Aragão (1) já desde as lutas da Cisplatina “para cúmulo dos males que assolaram a província, a peste das bexigas surge como aliada das secas e do recrutamento no processo de despovoamento do Ceará.” Ela se refere aos anos de seca de 1824 -1825 e ao tratamento dado ao flagelo no segundo império, numa análise do episódio do recrutamento dentro de um quadro administrativo confuso e conturbado onde a seca foi só mais um elemento a gerar dificuldades”.(1) A forma brutal como se dava o recrutamento é descrita como um aspecto da arbitrariedade do governo arrancando das suas famílias”os homens do Ceará, “em processo de extinção.”Ainda embarcavam,no caso, sob o  comandante de armas da província Conrado Jacob, sendo presidente da província Antonio Sales Nunes Beford, em condições insatisfatórias e com a proibição de os vacinar em terra. Nenhuma vacina se efetuou consequentemente. Só mais tarde deu-se a devida atenção ao episódio do recrutamento na província. Na Câmara “A queixa do povo do Ceará se fez ouvir apesar da falta de garantias e da universalidade apenas teórica da Constituição”.

Ainda no Ceará quanto a Guerra do Paraguai conta-se do alistamento voluntário dos integrantes das classes mais altas para compor a alta oficialidade, dentro de uma perspectiva, não assegurada, de não lutar no front. A classe média com os denominados sorteios premiados podia optar pelo suborno do encarregado do serviço militar ou apelar para um padrinho poderoso. Quanto  aos  pobres eram recrutados a força -  repetindo-se o  hábito já sacramentado   nas lutas cisplatinas-  dando-se em razão disso uma fuga em massa  para as serras  ou adentrando-se mais fundo nos sertões. Entretanto, a ideia do voluntariado patriota existia ente alguns jovens. Um exemplo disso foi a atuação da jovem cearense Jovita Feitosa e na Bahia, a de Maria Quitéria. (3) Com certeza esse procedimento padrão existia nas várias províncias como Pernambuco, Rio Grande do Norte e alimentou todo um ciclo de favores e benefícios fortalecendo as relações de compadrio ainda hoje difíceis de se extinguirem.

Uma história engraçada, sobre os "voluntários da pátria" - que saíram marchando pelas ruas do Rio de Janeiro, aplaudidos pela multidão, especialmente moças - quando chegavam ao fim da marcha, encontraram pelotões de soldados para alista-los. Então, saíam correndo para se esconderem. Uma coisa é ser "patriota de araque", outra é enfrentar a força bruta e o tiroteio. Acredita-se que foi a partir daí que começou o assunto da permuta de jovens brancos, por escravos africanos. Este procedimento era muito caro, pois o preço dos escravos tinha subido tremendamente, depois que a esquadra inglesa barrara o tráfico de navios vindos da África trazendo os escravos entregues pelos próprios africanos e comprados para as lavouras no Brasil. Um escravo chegava, então a valer um conto de reis, o que era muito dinheiro na época mesmo porque, às vezes, uma família chegava a permutar até 10 (dez) escravos, pela liberação de um só filho. Entretanto, no caso nordestino, o imperador Pedro II manteve-se irredutível no desejo de conceder verbas ao Ceará assumindo a posição de não permitir que morram de fome os habitantes de uma província. No entanto, apesar das alternativas e da boa vontade imperial num momento de escassez em que o Brasil recém findara a Guerra do Paraguai, terminou-se por implantar a política de retirada dos cearenses pelo porto de Aracati e pelo porto de fortaleza para região Norte do país. Observe-se que foram retirados também os escravos negros porque representavam bocas para alimentar. Sem dúvida um fator contributivo para que o estado se tornasse a “terra da luz”.

Fonte: http://www.nehscfortaleza.com/index.php/artigos-cient%C3%ADficos/item/301-escravos-e-nordestinos-na-guerra-do-paraguai.html

A Morte de Lampião

David Gueiros Vieira

Lembrei-me então de que até agora eu pouco tinha escrito, do que me fora confidenciado pelo tenente David Gomes Jurubeba, testemunha ocular da morte de Lampião. Na época em que o entrevistei, por dois dias seguidos, Jurubeba já tinha 99 anos. No entanto estava totalmente lúcido, ainda que cego e com problemas de estômago, que ele procurava mitigar limitando-se a comer apenas mingau de maisena, em todas as refeições.

O tenente David Jurubeba fora um “nazareno” – ou seja, um dos garotos da antiga vila de Nazaré, que dedicaram suas vidas a perseguir Lampião. Sentaram praça nas chamadas forças volantes pernambucanas, e passaram a perseguí-lo. Todos tinham mais ou menos a mesma idade que Lampião, e o tinham conhecido quando jovens. Lampião se desentendera com as pessoas de Nazaré, assim me contou Jurubeba, por chegar naquele local em dias de feira praticando violências e desordens, mesmo antes de se tornar o famoso bandido do Nordeste.

De acordo com o tenente Jurubeba, fora difícil “pegar” Lampião, não apenas porque ele era um gênio militar, mas também porque o mesmo montara uma rede de protetores políticos, e “coiteiros” que lhe davam todo apoio. Esses coiteiros compravam para ele as melhores armas e munições disponíveis, melhores até do que as da polícia – inclusive as balas supridas a ele tinham projétil de cobre, e não de chumbo, como os velhos rifles americanos “papo-amarelo” usados pela polícia. Esses coiteiros também serviam como tesoureiros do cangaceiro, guardando o dinheiro e as jóias que ele roubava, bem como comprando os perfumes e vinhos finos franceses, que o bandido tanto apreciava. Não se pode negar que Lampião tinha muito bom gosto. Era um sertanejo de “bom gosto”, ainda que bem primitivo.

Entre seus coiteiros políticos, em Pernambuco, ele contava com o apoio do prefeito de Águas Belas, Audálio Tenório, primo distante dos Gueiros de Garanhuns. Outros eram da polícia alagoana, como o coronel João Bezerra - que depois seria seu algoz na chacina de Angicos - sem falar da poderosa família Brito, de Sergipe, que lhe dava respaldo.

De tempos em tempos, afirmava Jurubeba, Lampião ia descansar na fazenda de Audálio Tenório, em Águas Belas, onde se encontrava com o coronel João Bezerra. Lampião adorava jogar cartas, de modo que ele e o coronel passavam a noite toda carteando, num ambiente iluminado apenas por uma fumegante lamparina de querosene. Na manhã seguinte, e ainda jogando cartas, os dois amanheciam com os rostos cobertos da fuligem da lamparina, “e Audálio só faltava morrer de rir, mangando (sic) deles”, contava o tenente Jurubeba. Lampião reclamava que João Bezerra roubava nas cartas, acrescentou meu informante.

Nessas ocasiões de jogatina, os dois combinavam encontros de batalhas faz-de-conta. As vezes que Bezerra “lutou” contra Lampião foram apenas tiroteios combinados antecipadamente, apenas com tiros para o ar, e ninguém saía ferido, assim afirmava Jurubeba.

Quando acossado pelas forças volantes de vários estados, Lampião fugira para Sergipe, por uma boa razão: ali mandavam os Britos, seus aliados, praticamente “donos” de todo o estado. Deveria, portanto, estar a salvo.

Ocorre que, em 1937, após a criação do Estado Novo Getúlio Vargas dera ordens para que todo o Nordeste fosse “pacificado”, com recomendação de serem mortos todos os cangaceiros e rebeldes que não se redessem. Isso resultara na chacina de Pau de Colher, na Bahia, em janeiro de 1938 - com 450 fanáticos religiosos mortos - da qual participara o próprio David Jurubeba, sob o comando do tenente Optato Gueiros, oficial da volante pernambucana. Essa campanha contra o banditismo resultaria também na morte de Lampião, em julho do mesmo ano, na gruta de Angicos, em Sergipe.

As ordens expressas de Getúlio Vargas eram para prender ou matar o velho companheiro de carteado do coronel João Bezerra. De acordo com o tenente Jurubeba, coronel João Bezerra preferiu matar Lampião, não em batalha, mas à traição, com vinho envenenado. O bandido adorava vinhos franceses, bem como perfumes franceses, com os quais praticamente se banhava.

A história do vinho fora que, como sempre, Lampião mandara buscar vinho francês de um comerciante sergipano, seu coiteiro de total confiança, chamado Pedro Cândido. Informado disso, João Bezerra dera ordens para que o vinho fosse envenenado. Isso foi feito com uma agulha de injeção, cuidadosamente enfiada nas rolhas das garrafas, e o veneno nelas colocado com uma seringa, sem que as rolhas fossem retiradas. O vinho envenenado foi fatal para Lampião e seu bando. Morreram todos do veneno, e não dos tiros da volante alagoana, assim me afirmou o tenente Jurubeba.

Destarte, em seus últimos dias, por ordens de Getúlio Lampião estava sendo acossado pela volante alagoana, sob o comando do próprio coronel João Bezerra, seu velho companheiro de carteado. A volante alagoana, por sua vez, estava sendo acompanhada, a certa distância, pela volante pernambucana, na qual estava o tenente Jurubeba.

David Jurubeba contou que os da volante pernambucana ainda ouviram de longe o tiroteio na gruta de Angicos, mas quando chegaram ao local Lampião e seus companheiros já estavam mortos, e as cabeças dos mesmos já estavam sendo decepadas. O tiroteio aparentemente fora apenas para dar impressão, à volante pernambucana, de que uma batalha de fato ocorrera. As cabeças decepadas foram levadas em latas cheias de álcool, por todo o estado de Alagoas, a fim de convencer o povo de que Lampião de fato estava morto. Nessa época morávamos em Palmeira dos Índios, onde meu pai era pastor da Igreja Presbiteriana local. As cabeças de Lampião e do seu bando foram trazidas para lá, mas minha mãe muito corretamente nos proibiu de ir olhá-las, como estavam fazendo todos os nossos colegas de escola.

A fortuna que os bandidos levavam, em dinheiro e joias, foi então dividida entre os policiais alagoanos. A morte de Lampião também fez a fortuna de vários outros coiteiros, que atuavam como seus tesoureiros, que se apoderaram de tudo o que o cangaceiro guardara com eles.

Anos depois, conheci um dos oficiais alagoanos que participara da morte de Lampião, o coronel Francisco Ferreira. Esse adquirira uma grande propriedade, na praia do Poxim, em Alagoas, e por muitos anos vivera ali nababescamente, em uma propriedade com milhares de coqueiros, e um harém de 25 mulheres. Quando o conheci, lhe restava apenas um grande diamante, “de estimação”, que ele guardava como lembrança. As mulheres também tinham sido mandadas embora, ao passo que sua fortuna fora se acabando. O coronel perdera tudo no carteado, pois era fanático pelo jogo das cartas.

A propriedade deste ex-policial alagoano era contígua à da sogra de meu irmão Fanuel Gueiros Vieira, uma propriedade de 175 quilômetros quadrados. A casa onde ficávamos era na vila do Poxim. Essa vila era localizada entre as duas grandes propriedades: a de D. Elsa e a do coronel. Da casa de D. Elza nós víamos o coronel todos os dias, sentado em frente à sua própria casa tomando sol, mas com um rifle atravessado nos joelhos. Por onde ele andava levava aquele rifle, e uma bolsa estilo “capanga” a tiracolo, cheia de balas. Não tinha um só minuto de tranqüilidade, pois sempre esperava ser morto por algum ex-capanga de Lampião. Meu filho David Jr., que hoje é pastor da Igreja Maranata, e economista da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, DC, me conta que nas férias que passava na propriedade da sogra do meu irmão, freqüentemente ele e o tio iam caçar nas matas da vizinhança, e que o tenente Francisco Ferreira lhes servia de guia.

Morrera Lampião nas grutas de Angicos, em 1938, mas a sua memória, 20 e tantos anos depois, ainda assombrava os viventes. 

Fonte: http://www.nehscfortaleza.com/index.php/projetos-e-pesquisas/item/265-a-morte-de-lampi%C3%A3o.html

Lembranças da Seca de 1934

David Gueiros Vieira

Em 1934/1935 morávamos na cidade de Gameleira, na Zona da Mata em Pernambuco, onde meu pai era pastor da pequena igreja presbiteriana local. Esse foi um tempo de seca no Nordeste, que me ficou na memória, apesar de minha tenra idade, de quatro ou cinco anos. Aliás, as secas não ocorrem em um ano apenas. Em geral se alastram por um período de tempo. Essa, dita “de 34”, começara anos antes, mas naquele ano ela se intensificara.

A cidade fora invadida por retirantes, vindos do sertão, praticamente morrendo de fome e sede. Perambulavam pelas ruas, buscando auxílio de casa em casa. Era um tempo de dificuldades econômicas para o mundo inteiro. A Bolsa de Valores de Nova Iorque entrara em colapso em novembro de 1929. Desde então bancos faliram aos montões, não apenas nos Estados Unidos da América, mas também na Europa. Muitas pessoas em Nova Iorque, em desespero pelas perdas econômicas e financeiras, se suicidavam pulando dos altos edifícios. O Brasil, país que sobrevivia unicamente da exportação de produtos agrícolas, passava por maus bocados. A indústria açucareira da Zona da Mata praticamente deixara de produzir, por falta de compradores internacionais. E para piorar as coisas, veio a seca, a grande inimiga dos nordestinos desde tempos imemoriais. Há registros coloniais de secas tremendas, afetando inclusive os índios bravios, que chegavam à costa quase que mortos de fome e sede, em busca de água e comida.

Para sobreviver, com o mísero salário que recebia como pastor, meu pai plantava batata doce e macaxeira no terreno da igreja. Que eu me lembre, comíamos batata doce e macaxeira de manhã, ao meio-dia e à noite, preparadas de várias maneiras, evidentemente. Mas havia sempre batata doce ou macaxeira à mesa, pois davam muito bem no terreno em que foram plantadas. Como falava bem o inglês, e fora tradutor do consulado americano no Recife, meu pai começara também a dar aulas particulares daquele idioma a pessoas locais. Isso sem dúvida reforçava um pouco o orçamento familiar. Mas eram poucos os alunos.

A pequena igreja presbiteriana de Gameleira de alguma maneira conseguia sobreviver. Alguns de seus membros trabalhavam para as usinas da redondeza, e ainda se mantinham trabalhando, apesar da crise. A congregação então tomou providências para ajudar os retirantes, no que fosse possível. Comprou sacos de feijão e de farinha, para distribuir entre os mesmos, o que era feito por mim e pelo meu irmão mais novo. Minha mãe colocava a mim e a meu irmão – que na época tinha apenas três anos de idade - à porta da casa, com canecos na mão para distribuir feijão e farinha aos retirantes que passavam por ali.

Perto da casa onde morávamos havia uma grande ingazeira, com galhos que se espalhavam bem longe, e davam sombra a todo aquele pedaço de rua. Era debaixo dessa ingazeira onde muitos dos retirantes procuravam abrigo. Esses chegavam aos montões, com roupas rasgadas, e cheirando muito mal – disso me lembro muito bem, pois o cheiro deles me nauseava. As mulheres retirantes, ao passar por nossa casa, diziam: “Benza Deus! Parece dois anjinho”. E tocavam na gente, para horror de minha mãe. Como resultado desses contatos e manuseios, apanhamos um terrível caso de sarna, depois curada com um remédio caseiro de mau odor, feito de vaselina misturada com enxofre.

Certa feita houve uma grande gritaria no grupo abrigado debaixo da ingazeira. Um homem, não se sabe se louco ou se embriagado, começara uma briga, e um policial foi prendê-lo. O homem reagiu e deu no policial um golpe de peixeira, dito “pernambucano”, que lhe cortou a barriga de um lado ao outro. Seguido de um grande número de pessoas, o soldado voltou correndo e gritando, tentando apanhar com as mãos as entranhas que lhe caiam. Minha mãe, ao saber do que ocorria, ainda tentou nos puxar para dento de casa, pois estávamos à porta, com os sacos de feijão e farinha, colocando canecos cheios desses produtos nos sacos de aniagem dos pedintes, que por ali passavam. Mas a ação dela fora tardia, pois testemunháramos tudo.

Depois disso, ela não mais nos permitiu ficar à porta dispensando aquela caridade. Especialmente porque tínhamos apanhado um terrível caso de sarna, pelo manuseio carinhoso das mulheres retirantes.

Dias depois, não sei quantos, passaram pela nossa casa umas crianças choramingando, pedindo esmola e dizendo: “Uma esmolinha, pelo amor de Deus, que meu pai morreu puquê tava debaixo da ingazeira.” Um destacamento da polícia fora lá e matara o homem, em vingança da morte do companheiro que levara a facada.

Tempos terríveis aqueles, com o colapso da economia, e ainda mais a seca, trazendo fome e miséria. Outras secas ocorreram no Nordeste, durante minha infância, mas essa foi a primeira que testemunhei, e que me ficou gravada para sempre na memória.

Fonte: http://www.nehscfortaleza.com/index.php/mem%C3%B3ria-das-secas/item/107-lembran%C3%A7as-da-seca-de-1934.html

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