Tenho agora, mais do que nunca, motivo para meditação. Agora, que um filho se movimenta no meu seio. Motivo para recordar cada revelação nova, coisas que acontecem num átimo e que não se consegue exprimir. No entanto, sinto o imperativo absoluto de tentar dizer. Como o momento em que soube: ele está no meio seio. O momento forte e decisivo de saber: sou mãe. Todos os meus deuses-lares sorriam docemente. E não sei dizer-te com que intensidade quis que participasses do anúncio: sou tua cooperante na gestação da vida que vive em mim. Foi um rasgar de milhares de coisas sabidas e vistas na explicação do porquê elas foram / são. As paredes que me abrigaram ao chegar aqui pareciam reconhecer-me e me convidarem. Como as reconhecia eu e sentia desejo de beijá-las... Mistério que os antigos exprimiram através de seus "genius loci", deuses-lares.
Todas as coisas e imagens reais e imaginárias rolaram cuidadosamente / musicalmente durante não sei quanto tempo, dentro de mim. Era a torrente de minha vida correndo para a vida nova gerada, como, após uma tempestade, o leito seco do rio é invadido pelas águas. Quanto tempo permaneci assim, não sei. Mas eu queria penetrar, ir até o fim, até o fundo. Todos os ruídos da vida me chegaram como apelos. O tormento do coração, do meu coração adolescente que jamais chegar a ser apaziguado. Tormento do homem que aspira a tudo saber, que jamais se satisfaz com a felicidade acessível. Desejo de poder. Vontade de poder. Desejo de possuir. (Pois cada um de nós carrega dentro de si a angústia de um Fausto ou de D. Juan. Poder e posse. Felicidade sonhada que jamais será satisfeita neste mundo).
Bem aconchegada nos braços da minha nova realidade, senti: vou lançar no mundo um ser de demanda. Será inquieto, insatisfeito, alegre, apaixonado, livre, só. Como tu. Assim será. Assumirá a condição humana: homem entre os homens. Sujeito à dor e à morte, ao amor e à beleza: à vida. nele estará resumida - como tu em mim - uma colheita imensa de passados. Ele será mais antigo do que eu. Do que tu. Uma geração inteira mais antiga. Deveremos ser os guardiões de sua antiquíssima estirpe. Assim como a guardaram outros, para nós. Estirpe além do e sobre o sentido de títulos. Brasões invisíveis, impressos na alma.
Meu filho está em mim e não o vejo. Amo-o, porém - e quanto! - como quem ama a própria vida. Como quem ama a si - mesmo. Como eu amo... Visões. Imagens. De repente, vejo o que é tão impossível de ver e dizer que tenho dúvidas se devo tentar. Tento: vejo o eu do meu filho, através do teu e do meu. Vejo e sei como será / é . Não há futuro. Há este momento de luz: clarão ofuscante: toda a riqueza do homem, toda a força do homem, toda a miséria do homem - é o homem. Ser homem é assumir tudo isso.
Tudo o que li, vi, aprendi se encerra nisto: vi o maior e o menor dos homens - são terrivelmente semelhantes. A voz que o disse me despertou. E agora que trago um filho em mim, lembro o que me foi dito.
Se estivesses aqui, agora, eu te pediria que tomasses minha mão, que me olhasses para veres o que vi: sorvedouros, vertigem, voragem. Tudo isso e bem mais. (Quão mais!).
A noite já desceu. Não queria ser obrigada a sair dessa imensidão em que estou mergulhada com meu filho. Sou uma mulher habitada por aquele que não está aqui - tão presente, no entanto! - e por ti, meu filho, por quem temo e por quem me sinto atraída e intensamente feliz. O pólo de minha vida és tu. Amanheces e anoiteces, despertas e adormeces, rezas e sonhas no meu pensamento. Somos um: ligados para sempre.
Medito: ele está aqui, sem forma de homem, porém homem completo, perfeito. Nenhuma deficiência. Urge conservá-lo assim. Tenho que ver como será sua alimentação e minha. E a do pai. tenho minhas teorias, meu modo de pensar, de ser, de agir. Os três teremos uma alimentação e lazer saudáveis. Milhares, milhões, não têm o que comer: o mínimo necessário, filho. Precisas, desde logo, conhecer todos os teus privilégios. Há um que é maior do que todos: fruto és do amor. De dois seres de dor e luta. Entrarás no mundo que te solicitará com exigência total e de todas as formas. Não poderás ignorar: até hoje, o grande teste é a árvore, o lenho. Há o primeiro, do bem e do mal. Há o segundo: aquele de onde um Deus - escândalo para uns, loucura para outros - quis pender como estranho fruto de amor, morte e ressureição. Fruto-vida. Sei que comerás do primeiro e te crucificarás no segundo. O lenho te abrigará em seus braços rijos de madeira. Mas estarás vinculado a um único Deus Verdadeiro. Isto poderá triturar teus ossos até o pó. Destruir ilusões: mostrar realidades. Serás forte amor, meu filho. fonte nAquele que conforta.
Se permanecermos apenas sob a sombra do primeiro lenho, seremos vivos em decomposição. No segundo, apesar de chagadas, sangrentos, sentiremos, por cada poro, penetrar a seiva da vida. Irrompem a ressureição e a glória.
Eu te ensinarei tudo, filho. O grande único necessário paradoxo da vida. E ele te ampliará horizontes tão ilimitados que apenas os que vislumbram são capazes de os sentir, sofrer, gozar.
Dorme, dorme ainda. Quando chegar a hora, saberemos.
*Professora e escritora / Garanhuns, PE - 2000.
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