Tivemos pelo segundo ano consecutivo a suspensão do carnaval, por força da epidemia do coronavírus, para frustração de milhões de foliões. Nascida em palcos europeus, denominada de Entrudo, a festa chega aos trópicos e aqui ganha expansão e incorpora novos elementos, desde fantasias, bonecos gigantes, ritmos e tudo mais que caracteriza a cultura afrodescendente e indígena. Principalmente em cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife.
As origens dessa grande festa são buscadas nas mais antigas celebrações da humanidade, informa a pesquisadora Claudia Lima, no seu livro EVOÉ, editora Raízes Brasileiras, edição 2001. No Brasil, assume ritual nacional, prevalecendo o seu aspecto urbano e democrático por envolver todas as classes sociais, pelos menos durante o ciclo momesco, pelas ruas das grandes e pequenas cidades.
Antes de alcançar as ruas, o carnaval era festejado nos salões de clubes e de hotéis, onde se realizavam os bailes, cujo acesso era restrito às classes sociais mais abastadas. "O réveillon de fim de ano abre a série de bailes carnavalescos, que termina com o baile de Sábado de Aleluia, mas tais limites não são rígidos", informa a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz, no seu livro Carnaval Brasileiro, Editora Brasiliense, edição 1992.
Consta que a partir do fins do século XIX, um grupo de intelectuais buscavam elementos para a definição do que se identificaria como "identidade brasileira". E o carnaval foi um "prato cheio" para essa busca. Esses jovens tinham a convicção de que o primeiro e definitivo traço para essa identidade residia justamente na mistura de elementos heterogênicos - aborígene, europeia e africana. Tal composição antropológica abarcaria o carnaval, conferindo-lhe riqueza étnica e cultural, ou seja, a "cara" do Brasil.
Alguns desses autores integravam várias correntes artísticas: Guiomar Novais - pianista; Villa Lobos - compositor; Tarsila do Amaral e Anita Malfatti del Piccha - poesia; Mário de Andrade e Oswald Andrade - escritores, os quais formaram a primeira teoria sobre o que se chamaria de "brasilidade'.
Segundo essa teoria, o ser brasileiro "devora" tudo o que provém do exterior e, ao digeri-lo, dá lugar a um produto novo que não pode ser reduzido a nenhuma de suas raízes, sendo também mais variado e rico do que qualquer uma delas.
Mário de Andrade publicou, em 1928, a epopeia burlesca Macunaíma, cujo herói era ao mesmo tempo índio, negro e branco e, por isso, não tinha nenhum caráter... Nascido na Amazônia, "Macunaíma" partia para São Paulo a fim de combater o maléfico gigante Pietro Pietra... Operava-se então uma reviravolta intelectual que sacudiu fortemente os meios letrados, a partir de São Paulo, sede do movimento e também capital da riquíssima região produtora de café.
Por volta de 1930, negros e mulatos haviam conquistado o direito de desfilar pelos centros das cidades durante o Reinado de Momo; sua contribuição às crianças artísticas do país eram reconhecidas como válidas e consideradas importantes, o que fizeram subir na escala dos valores culturais nacionais. A ideia de que o carnaval constituía uma "tradição nacional" era o corolário indiscutível de uma evolução que seguia tranquilamente o seu caminho, mas tal não se dava sem resistências às vezes fortes.
Jorge Amado reconhecia, ao publicar o seu primeiro romance em 1931, ser o carnaval um elemento fundamental da cultura brasileira. Admitia, por outro lado, que a alegria contagiante e sem obedecer a qualquer regra poderia despertar o riso no contexto das nações.
As escolas de samba no Rio de Janeiro e as orquestras de frevo no Recife são os grandes braços e marcas do carnaval brasileiro, com a incorporação de uma infinidade de elementos em forma de adereços, fantasias, motivos e peças da cultura afrodescendentes e indígenas. Em Pernambuco, especificamente em Olinda, surgem os chamados "bonecos gigantes", representativos de personagens dos vários segmentos sociais, políticos, culturais e artísticos. Tais misturas e envolvimentos conferem as marcas do que ficou consagrado como o "carnaval brasileiro".
O frevo, que completa em 2022 seus 115 anos, declarado inclusive "patrimônio cultural nacional", é a principal marca do carnaval pernambucano, desde fins-começo dos séculos XIX e XX. No seu livro sob o título Guia Lírico e Amativo da Cidade do Recife, edição da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1992, o poeta e jornalista José Gonçalves de Oliveira discorre sobre as modalidades do frevo sob o título FREVO/PASSO:
O passo é a acrobacia
Da alma, entre o espaço
E a música, que se lia
No ponteiro do compasso
Ao combinar do mormaço.
É o voo do corpo, improviso
De mil gestos sincopados,
E embora do chão partido
Vai ao ar coreografado
Em feitio de bailado.
É do Recife e nascido
Em contraponto com a terra.
Para ser um bom passista
Há que ter fogo nas pernas
E uma alegria de festa.
Ter de ter intimidades
Com ritmos e andaduras,
Com o moto-espírito das águas
E a reinação de mesuras
Que é do capeta das ruas.
Tem o passo do serigado,
"Tesoura", do caranguejo.
Tem xis com xis, agachado,
Horizontal, "de capoeira".
Além do cata-xerém,
"Saci correndo", atochado,
"Fura donzela", "oia o trem",
Parafuso, "entubibado".
Afora os que de salão,
Dos bailes organizados:
"Onda", "cobrinha", encangado,
"Chã-de-bundinha", "fogão".
E aqueles mais inventados
Na farta imaginação,
No suor, no sangue em salto
Do assumido folião.
Frevo/passo: invenções
Combinadas, espontâneas,
Gaias manifestações
Da alma pernambucana.
*Manoel Neto Teixeira, escritor e jornalista, membro da Academia Olindense de Letras, é autor, dentre outros, da obra Pinto Ferreira (Vida e Obra). Transcrito da Revista Cultural O Século.
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