sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Asa Branca, Rio e Paris

Felizmente por trás de todos esses dramas, reais ou fictícios, vividos em Asa Branca, no Rio de Janeiro ou em Paris, existe sempre uma consciência que se ergue contra o radicalismo religioso, político, ou ideológico


As cidades - como as pessoas são às vezes ameaçadas de destruição e morte. É quando aparecem milagrosamente os seus salvadores, heróis e santos. Isto acontece tanto na vida real como ficção. Tanto em Asa Branca, como no Rio de Janeiro ou em Paris, e os fatos ou enredos viram livros, filmes ou novelas.

E por falar em novelas, estamos assistindo, como quase todo mundo, "Roque Santeiro", de Dias Gomes, pois o seu índice de audiência supera até mesmo o Jornal Nacional. Nela, Asa Branca, de simples povoado tornou-se em pouco tempo numa promissora cidade, atraindo turistas e fábricas, virando tema para filme de cinema. Criou-se um mito. fabricou-se um santo, em torno do qual passou a viver e depender aquela comunidade, outrora pobre mas sossegada e tranquila. A fé do seu povo passou a ser explorada comercialmente com milagres que ali teriam acontecido.


Justamente quando Asa Branca está  vivendo o apogeu do clima de devoção e de desenvolvimento, chega inesperadamente o próprio Roque Santeiro, vivo e bulindo, àquela altura tido como santo milagroso, consequentemente morto e imobilizado numa estátua de bronze na praça principal da cidade, que tem o seu nome.

É quando as autoridades locais - o prefeito Abelha, o vigário Hipólito e o coronel empresário Sinhozinho Malta - unem-se e, conscientes da ameaça que representará para a cidade o aparecimento do homem a quem se atribuía todos os milagres, fazem entre si o pacto sigiloso de mantê-lo afastado, como um prisioneiro. Aquele homem - devoto também pois  viera pagar uma promessa - estava condenado pelo milagre que não fizera, a manter o milagre do enorme crescimento da cidade que lhe era devido, realmente.

No capítulo 39 - a novela está no começo e o seu desfecho é imprevisível - o vigário Hipólito confessa a um padre mais moço o seu pecado por omissão: o de permitir que a religiosidade do seu povo simples viesse a se transformar, como se transformou, numa crendice popular, ignorante e primária, e como tal atentatória aos  dogmas da Igreja.

Estava Asa Branca ameaçada por milagres que não aconteceram por um "santo" que ali se encontrava vivo, e tão humano que, inclusive, se emocionara ao ver um homem, conterrâneo seu, a carregar tão pesada cruz em sua devoção.

Da crendice à intolerância é um passo; da intolerância à radicalização, outro. Tanto em religião, ideologia ou política que ameaçou o Rio de Janeiro como o radicalismo religioso está a ameaçar agora Asa Branca.
 
Foi em junho em junho de 1968, quando a repressão dominava este País, que um oficial da  F.A.B - o capitão aviador Sérgio Ricardo Miranda de Carvalho - recebeu uma  ordem à qual respondeu simplesmente "não". A ordem era fazer explodir a represa de Ribeirão das Lages e o Gasômetro, jogando a culpa nos inimigos do regime militar, que seriam caçados e "mortos a pauladas". Seria um desastre muitas vezes maior do que aquele preparado no Rio Centro, anos depois. Seria uma chacina capaz de transformar a Baia de Guanabara numa baía de sangue. Foi então que um gesto decidido, sereno e firme do Capitão Sérgio, evitou essa tragédia nacional.

Vimos e ouvimos o "Capitão Sérgio" contar tranquilamente a sua história pela televisão. Na novela, Roque Santeiro virou santo por um milagre que não fez, ganhando estátua de bronze na praça; na realidade brasileira dos nossos dias, pelo milagre que realmente fez, poupando vidas, que reconhecimento, homenagem ou prêmio, teve o capitão Sérgio? Teve a sua reforma humilhante, a sua aposentadoria vergonhosa. Mas será que não teve padrinhos? Teve os mais fortes, no governo passado, como o brigadeiro Eduardo Gomes e o general Cordeiro de Farias, testemunhas da sua vida profissional limpa e decente mas que nada puderam fazer pelo bravo "Capitão Sérgio", vítima do radicalismo político tão ferrenho e cego do Brasil como o radicalismo religioso  em Asa Branca.

Fala-se que o diretor Costa Gravas, quer conseguir captar em filmes memoráveis a violência dos governos mais repressivos na América Latina, pretende filmar a vida do Capitão Sérgio, consagrando-o, fazendo um herói do esquecido piloto da  F.A.B. Seria uma lição de causar vergonha tanto ao governo como ao povo brasileiro.

As cidades - como as pessoas - são às vezes ameaçadas de destruição e morte. Não somente Asa Branca e o Rio de Janeiro. Até Paris sofreu essa terrível ameaça, quando da ocupação pelas forças nazistas. Salvou-se do radicalismo ideológico um jovem oficial que também respondeu "não" à ordem expressa de Hitler, consciente do que ela representava como patrimônio histórico e artístico da humanidade.

Felizmente por trás de todos esses dramas, reais ou fictícios, vividos em Asa Branca, no Rio de Janeiro ou em Paris, existe sempre uma consciência que se ergue contra o radicalismo religioso, político, ou ideológico, e onde o padre Hipólito (da novela Roque Santeiro), o "Capitão Sérgio" e o oficial alemão figuram como heróis ou anti-heróis. As vezes, heroicamente derrotados. Ou esquecidos. (Texto de Luiz Souto Dourado (foto) | Foi prefeito de Garanhuns e deputado estadual Recife, 28 de setembro de 1985).

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