quarta-feira, 2 de julho de 2025

Meu sequestro juvenil


Manoel Neto Teixeira*

O homem, animal social e político, no dizer do sábio Aristóteles, jamais viveu isolado, feito ilha. Desde tenra idade dependemos do aconchego familiar; passo à frente, é tempo da escola e, como extensão maior, o social. Em cada etapa recebemos as influências exteriores, do mundo circundante, o que contribui, de certa forma, na confirmação da personalidade de cada um, ao lado da carga genética, claro.

Confesso que fui uma criança feliz (aliás, em tese, toda criança é feliz), ou seja, a infância pressupõe espontaneidade, alegria, sorriso fácil, peraltices, enfim. Quase tudo é felicidade, independente até de condição social. Quanta criança pobre (pobre, na forma do  modelo de economia capitalista que aí está) é alegre, feliz...

Nasci em uma pequena propriedade rural em Itaíba, à época, distrito de Águas Belas, juntamente com os manos Duda (primogênito, já noutra dimensão), Lívio, Aires e Geneci. Nossos pais - Henrique (José) Jacinto e Alzira Alves Teixeira - migram dos grotões de São Bento do Una para Itaíba, inclusive nossos avós paternos, Manoel Jacinto e  Salustiana de Melo e os vários tios (tias). As razões reais, jamais me foram reveladas.

Certa feita, tivemos a felicidade de receber, lá no sítio, a visita da minha tia paterna Luiza Moreira, juntamente com seu esposo, João Moreira, e os filhos Valdir e Valdemir. Das mãos da tia Luiza recebi, pela primeira vez (qual não foi o meu deslumbre), uma maça, fruto inacessível naquelas terras áridas do Agreste/Sertão. Não  sabia eu que por trás de todos os afagos estava sendo nutrido o meu  próprio "sequestro".

Dito e feito. Eis que, horas depois, estava eu em cima da cabine do caminhão dos tios, ao lado dos primos Valdir e Valdemir, rumo à cidade grande, Garanhuns; no primeiro instante a saudade instalada, do sítio, pais, irmãos, como se uma nova eternidade começasse a se formar na minha cabeça; ao mesmo tempo a expectativa, o impacto frente à cidade grande que me aguardava; esta que viria a se tornar a cidade dos meus sonhos, dos novos encantos, do amor definitivo.

Nem sabia eu que por trás dos afagos estava sendo armada uma "silada", pois não se tratava de um simples passeio; para mim, veio a ser uma mudança; chorei copiosamente, ainda hoje lembro nitidamente, 60 anos depois; não fui "consultado"; se o tivesse, certamente teria recusado; todos sabiam; fui naquele instante "apartado", termo muito usado naqueles tempos, para circunstâncias tais. Meu novo endereço: Rua Capitão João Leite, 226, Boa Vista, Garanhuns. As ladeiras, os carrinhos, os piões, as brincadeiras de ruas (e ruas sem  calçamento e sem asfalto); os coleguinhas, as brigas, as frutas "roubadas" do Sítio dos Medeiros, onde hoje é um populoso bairro; tudo era encantamento. A cada final de semestre colegial, a ansiedade e expectativa para o reencontro com os manos, pais, animais, passarinhos, a paisagem agreste/sertaneja.

Não sabia eu que esse "sequestro" fora concebido com a aquiescência dos  meus pais; e que eu, dentre os irmãos, Duda era o mais velho (por que não ele?), fui  o "eleito" para deixar o sítio e partir para abraço com a polis, onde o Colégio Diocesano de Garanhuns estava à minha espera; à época, um dos mais  credenciados do Brasil, pelo alto padrão pedagógico e  disciplinar.

Dois anos foi o tempo de  convivência, aprendizado e afeto, no novo lar; corria o ano de 1953; meus tios dispensavam-me o mesmo tratamento que  dedicavam aos filhos biológicos - Valdir, Valdemir, Avani, Socorro, Jane; pela manhã, a arrumação para ir ao Colégio, após o café, regado a cuscuz, inhame, macaxeira, ovos, leite, pão; a farda engomada pelas mãos de Guiomar, a "empregada" que fazia parte da família; na volta do Colégio, ao meio dia, o almoço e logo a seguir, na garagem, a confecção dos nossos brinquedos, o barco, a madeira, o serrote, o martelo, os pregos e os exemplares dos carrinhos e dos engenhos inventados e produzidos, para o próprio deleite e, a "sobra", para ser vendida na feira livre.

Deu no que deu; isto é, 70 anos depois tenho a felicidade de contar essa pequena mas significativa história pessoal; não sabia, naquele tempo, como sei hoje, que tudo fora preparado para o meu progresso pessoal, profissional e intelectual, com amor e carinho; aos queridos tios (já noutra dimensão, mas presentes na minha alma), os primos, primas, minha eterna gratidão; só o Criador pode lhes retribuir, plenamente, o  carinho, a dedicação, o amor, mas o meu coração faz, silenciosamente, o gesto da gratidão. (*Manoel Neto Teixeira, é membro da Academia de Letras de Garanhuns).

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