Na decadência da nossa literatura brasileira e no conhecimento geral de nosso idioma, a maioria dos meus leitores jamais teve em mãos um romance do extraordinário escritor que foi Camilo Castelo Branco. Somente os avós da presente geração se deliciaram com as tragédias amorosas que formam de quase noventa obras publicadas pelo fecundo trabalhador intelectual português. Em nossos dias, ler romances é quase pura perda de tempo e de dinheiro: nada se aprende da trama literária e tudo se perde pela pobreza da linguagem. Os que, em determinados grupos sociais, ainda procuram, por exemplo, as obras nefastas de certo escrevinhador de novelas, refazem unicamente para mais ainda se emporcalharem com as sujidades imorais que pululam nas páginas de tais escritos. Estamos nos fins do Século XX e todos os fins de século se caracterizam por lamentável decadência geral.
Parece-nos que a humanidade cansada de tantos fracassos, sem esperanças de pronta melhoria, se deixa dominar por esse desalento em que hoje vivemos, por essa conveniência com todos os deslizes do caráter humano. Ler ou ouvir qualquer exposição de ideias, seja nos jornais, seja nos rádios, seja nas televisões, é deparar com essa meia língua de quem nada sabe expressar porque nada tem, de valor, para ser expressado. Para fugir a estas jeremiadas socorri-me desse tesouro vocabular de Camilo Castelo Branco, trazendo aos possíveis leitores neste escrito algumas palavras já esquecida na fraqueza de suas memórias.
NASCEU EM LISBOA
Embora nascido em Lisboa, viveu sempre na região entre Douro e Minho, sendo a cidade do Porto como seu predileto local literário e aventureiro. Retirado depois para a sua definitiva residência em São Miguel de Seide, onde se desenrolou a tragédia da sua vida marcada pela dor, pelo sofrimento, pela desagregação da família, vendo enlouquecer o filho querido, sentindo cada vez mais o enfraquecimento da vista e antes de ficar totalmente cego, num momento de completo abandono, abandonou a vida, suicidando-se com 2 tiros fatais. Nessa atormentada existência, viveu sempre e com o povo aprendeu a velha língua portuguesa, remoçada embora pela sua inteligência e enorme valor literário. Aprendeu com os minhotos a expressão banquinha de cabeceira, hoje suplantada por criado mudo ou simples mesa de cabeceira. Substituiu o reles verbo defecar por esta inesperada criação sua: encloacar. Da velha palavra latina cloaca, não só derivou Camilo o verbo acima citado mas também os derivados ainda hoje em uso pelos que sabem a língua portuguesa: cloacagem, instaladas de esgotos; o adjetivo cloacal; o adjetivo aviltante Cloaqueiro e cloacino. Em lugar de dizer: livrar-se de um tumor, escreveu Camilo defecar-se de um tumor. Não tendo alcançado a idade da luz elétrica, nem mesmo a do gás acetileno, tendo de escrever constantemente com o mirrado auxílio de uma lamparina de azeite, deu-lhe a função e fazer oftalmias: É que já se ia ressentindo desse continuado esforço até chegar a beira da cegueira completa. Pelo esforço para ainda ver o enxergar, se dilatara mas suas pupilas, fenômeno que está contido no verbo espipar: olhos espipados, olhos arrepulados. Daqui a escureza, o entenebrecer de que atormenta. Para ajudar a si mesmo esse progredir da sua decadência física, fundiu tudo neste pensamento tristemente dele: A paciência é a riqueza dos infelizes. No presente momento por que passa o casil, calha-nos a todos essa riqueza dos infelizes, a paciência.
PROFESSORES DE COIMBRA
Polemista temível, dava as polêmicas o nome de azuinadas, mas proveniente de digestão mal feita, ou então pandorgas foliculárias. Note-se que pandorga, em seu significado certo, é cantora, serenata, pândoga: pandorgas foliculárias através de jornais, de folhetos. Nada tem a ver com "papagaios", "quadrado", "pipa" como se usa no Rio Grande do Sul. Nas polêmicas foi que Camilo fez a sua fama de terrível espadachim, arremessando palavras que era dardos certeiros ao adversário. Enfrentava, ou como dizia, enrostava fosse lá o sabichão que fosse. Acatando os professores de Coimbra, dava-lhes o nome coletivo de cavalaria das sebentas. Eram as sebentas o que hoje se chama apostilha, resumo de aulas para estudantes preguiçosos ou pouco inteligentes. A tais estudantes os denominava de sebenteiros. Aludindo ao chefe de tais sebenteiros, tido havidos como pessoa de grande saber, lhe pespegou o neologismo científico de Kynocephalo, cabeça de cão como diz a etimologia: gr. Kyon. - onos, cão, Kephale, cabeça. Mas o que haveria de ofensivo em tal denominação aplicada a ser humano? Havia ofensa porque Kynocéphalo era justamente a denominação de uma certa espécie de macacos, cuja cabeça era parecida ao do cão. Não hauriu Camilo este vocábulo da linguagem popular, mas era uma reminiscência que lhe ficara dos cursos de medicina que tentou seguir, sem completá-los. Em uma das suas muitas polêmicas, usou, para deprimir o adversário, de palavras acremente ofensivas: minotaurizado, de Minotauro, criação da fábula, monstro metade homem, metade touro. Qualificava-o simplesmente de corno, pelos muitos chifres que lhe pusera a esposa. De outro oponente disse que não passava de um fala de bordel, proxeneta reles, cheio de carnalidades. Era um parrana, bobo, um patego, imbecil de pés grandes, que desde a infância quando ainda garraio, molecote, já fazia parte do reino da parvônia.
Certa vez, enfureceu-se Camilo com um farejador da vida alheia, chamando-o de malsim de lares alheios, espião dos lares dos outros, ribaldo, descarado, classe que vivia a repupular pelos alcouces enquanto as suas mulheres não passavam de senhoras de muito bem fazer a quem lhes pedia. A esse que vivia a estimular a vida dos outros, iria aplicar uns golpes do seu pingalim, chicote, e fazê-lo regambolear as pernas em fuga inevitável. Isto se continuasse com a sua cherinola, trapaceirice, com a qual pensava de alça premar-se como se fosse um leônculo (leãozinho) de papel. Dava-lhe um conselho: que se limitasse à sua suciata (de súcia) e deixasse em paz os lares honrados. A um amigo, que lhe pedia perdão a tantas estouvanices de seus opositores, ponderou Camilo que eles não desaparecessem da cena, em seus latíbulos (esconderijos), e lá se empregassem a fundilhar suas ceroulas rotas, continuaria a surrá-los até que fossem fazer parte da Congregação cosmopolista do vale de Josafá! É uma referência ao dia do Juízo Final, em que, segundo a religião, os mortos ressuscitarão em sua carne e, no vale de Josafá, nos arredores de Jerusalém, se reunirão para ouvir a sentença final da boca de Jesus Cristo. Aqui lhe vem a Camilo uma recordação de quando foi seminarista e que seminarista! Por esta pequena amostra do rico vocabulário de Camilo. vê-se que, na sua época, ninguém possuía tantas palavras ferinas em seus recontros polêmicos. Para terminar, este pensamento sobre o perdão das ofensas: Perdoar, mais bela - e perfeita desgraça que Deus criou! Camilo não era de perdoar nada a ninguém. Mas das suas cinzas ele que me perdoe o tê-lo arrancado para os leitores deste jornal. (Fonte: Transcrito do Jornal O Monitor | Garanhuns, 04 de janeiro de 1986).
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