segunda-feira, 21 de julho de 2025

O espaço do teu rosto (conto)

Luzilá Gonçalves Ferreira

Luzilá Gonçalves Ferreira*

A mulher sozinha na sala apagou a luz, guardou o Rilke sobre a mesinha. Foi à janela, a cidade lá embaixo, ruas desertas, vitrines se dissolvendo na escuridão e nos edifícios raramente uma lâmpada acesa, insônia, algum trabalho inadiável ou alguém doente, a vida lutando:

A mulher foi sentar na varanda e olhou o céu. Prosaicamente estrelado.

Da varanda ao lado, invisível, veio um cheiro de jasmim-laranja; a vizinha cultivava num vaso um jasmineiro, feito quem cultiva amor. Cheiro de jasmim num décimo andar em plena cidade. A mulher fechou os olhos, abandonou-se, e o cheiro e as estrelas a transportaram longe, ela pequena. Havia um jasmineiro perto do curral e as estrelas davam vertigem. Mãe, ela perguntava, em que longe estão as estrelas? A mãe explicava, as estrelas tem delas que já nem existem, deixaram de brilhar há anos, séculos talvez, e eu vendo mãe? eu vendo o que não existe? então a gente também pode ver fantasma e comadre Florzinha?, e tudo era misterioso mas o mistério se explicava e o mundo era grande e pequeno. E a mãe contara que estrela cai, e aí não tem brilho nem nada e ela imaginava sair catando pedaço de estrela e guardando num saco feito fazia com as estrelas do mar e as cestinhas de ouriço: aquilo sim, fora revelação, dentro de um bicho tão feio havia coisa linda assim? O mundo era enorme e cabia todo na cabeça dela e era tão simples.

Levantou-se, foi ao quarto. O homem na cama era um náufrago, confiante. A mulher olhou: o corpo longilíneo de bruços, a pele morena no branco do lençol. Os braços corriam ao longo do corpo, as pernas ligeiramente afastadas, mais escuras que as nádegas, que o calção protegera do sol da praia. Um homem. Um metro e setenta de cálcio, gordura, sais e água, dispostos de modo a formar um belo corpo amado. Pouca coisa. Tão pouco espaço ocupava no mundo aquele amontoado de carne e ossos. Entretanto aquilo vivia e os braços enlaçavam para a amizade e o amor, e os, pés se inventavam caminhos.

O homem se voltou, o rosto se oferecendo ao olhar. Ela contemplou os lábios grossos, semiabertos. Eu sei o gosto deles, ela pensou, eu seu o jeito de seu beijo e sua boca na minha, dizendo coisas sem pronunciar palavras e seu modo de apenas roçar os lábios. Suave.

Ele dormia com os olhos semi-cerrados, as pálpebras tremiam às vezes. Sonhava? Ela imaginou: os mundos nos quais ele navegava e nos quais ela estaria. Sentiu saudade dele, desejou acorda-lo. Para nada. Só porque. 

Teu rosto, ela falou baixinho com medo de o acordar, teu rosto que eu conheço, que meus dedos percorrem tantas vezes te refazendo, descendo pela testa, passando pelos teus lábios, teu rosto, rosto meu, meu não sei por que o mistério e nem sei até quando, meu como se o houvesse criado. O espaço do teu rosto, ela disse, resumo do mundo para mim a abertura para mundos infinitos. Teu corpo me leva longe, desintegra, despedaça. Mas teu rosto devolve-me a mim mesma e no espaço do teu rosto eu me  integro ao mundo.

Passou o dedo de leve sobre a testa, desenhou-lhe o perfil, roçou a boca. Ele fez um trejeito, como para afastar um inseto, mas a boca sorriu suave. Eu conheço esse rosto, ela falou, se cegasse nunca mais voltasse a ver, eu o reconheceria entre milhões de rostos do mundo. Uma ternura muito grande cresceu dentro dela. Nós dois, a gente se entende. E eu me aproximo de ti como de nenhum outro ser humano e minhas lágrimas e fraquezas te são conhecidas. E tu não me temes e te desnudas e eu conheço em ti a doçura que ninguém sabe e o medo de viver. Separados, apresentamos distintas máscaras às pessoas, que nos conhecem fortes e duros. Mas nós sabemos em nós o espaço que nos criamos e como cada um é o elo que une o outro às coisas, ao cosmos. Eu te amo, ela falou. E se sentiu muito tola e era bom.

*Este conto foi publicado no livro "O Espaço do Teu Rosto", o primeiro livro da autora, uma pequena edição do movimento Piratas, em 1982, hoje esgotada. A revista Cultural O Século o publicou como uma homenagem a este filha de Garanhuns.

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