domingo, 6 de julho de 2025

Agonia final de um cão


Manoel Neto Teixeira*

Desde os primórdios dos tempos que o homem usufrui dos préstimos dos irracionais, para garantir a própria sobrevivência, e, em dados momentos, encontra neles encantamento e afetividade. Os domesticáveis passam, na maioria das vezes, a integrar a família como se fossem uma das suas peças.
Há que se lamentar, porém, um aspecto: nem sempre o homem retribui, nas mesmas proporções, os benefícios que lhe são dispensados pelos bichos. Muito pelo contrário, dá-lhes pancadarias e cacetadas, maus tratos diversos.

Quando envelhecidos, obviamente sem poderem mais oferecer os mesmos favores, já com o pelo ou a plumagem desbotada, são atirados às garras do abandono, à própria sorte.

Não foi outra a sorte daquela cão. Sem dono, entrou no rolo dos "vadios", dos abandonados, melhor diria. E haja a perambular, de rua em rua, sem encontrar, no entanto, outro alguém que lhe estendesse a mão, pelo menos um estalar de dedos, um gesto de simpatia, de acolhimento.

Migalha para matar a fome, coisa muito difícil. De quase nada valiam as desconcertadas andanças. Desesperado foi ficando com a amarga sorte. Rosnava ao sopro do vento. Forças quase nenhuma para resistir aos dramáticos dias.

A SOLIDÃO


A solidão lhe atormentava: ninguém ao seu redor ousava balbuciar o seu nome, talvez a sua angústia maior, pois os cães amam o próprio nome, gostam de repetida e diariamente ouvi-lo, ser convocado, participar. No brilho dos seus olhos notava-se as garras da solidão: o seu peito já não suportava a saudade - não importava a ingratidão - daqueles a quem só alegria dera, a quem jamais negara felicidade e por quem passara noites de vigília, garantindo sossego a ação dos malfeitores.

Os seus passos capengantes, costelas salientes, bem que refletem o peso do tempo e a penúria dos últimos dias. A tarde também envelhecia e a chuva caía torrencial. Soprava um vento frio e úmido. Olhou para um lado e outro e divisou um abrigo, onde havia um aglomerado de homens e mulheres. Não teve dúvida, partiu ao encontro daquele logradouro que mas lhe pareceu um porto amigo. Qual não foi a sua  decepção. Mas que isto; a poucos passos do abrigo, estirou o focinho como que perguntando, num gesto de delicadeza, se havia espaço para ele, pois lá fora a chuva continuava forte e fria.

De repente, um gaiato botou as garras de fora e, numa atitude repaginável, desferiu pontapés e jogou o velho cão sobre o lamaçal. A chuva aumentava e a agonia também. Lá ficou estático, sem ímpeto de se desvencilhar da sarjeta em que fora atirado. Em meio à aflição, dirigia para a pequena multidão (desumana, que se diga) olhar de súplica, mas em cujo brilho se refletia a grandeza dos que são fiéis, amigos, dos que não guardam rancores. Se naquela hora lhe fosse negado ver se aproximar a quem pertencera, as forças da alma dariam quando nada para sacudir-lhe o rabo, esboçando, dessa forma, o último gesto de amor. Entre os espectadores ouviam-se gargalhadas.

Eram os zombadores da sorte daquele vira-lata. Não sei bem, se vira-lata ele, o cão, ou vira-lata eles, os que riam da sua penúria... (Publicado no Diário de Pernambuco, edição de 15/08/1976).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agonia final de um cão

Manoel Neto Teixeira* Desde os primórdios dos tempos que o homem usufrui dos préstimos dos irracionais, para garantir a própria sobrevivênci...