Tão tarde chegaste: já era hora de partir. Já estava exatamente na hora. Não deu para chegares. Mal tocaram teus pés o limiar, mal teus lábios murmuraram toda a avalanche dos sentimentos, e teus olhos em fogo secaram as próprias lágrimas como o ar sedento dos estios.
Tarde demais para ti. (Não para mim, a fora-extra-tempo, no entanto, sujeita à duração de uma só vida. Só o sobrenatural me dá sobrevivência, embora seja eu um ser (aparentemente) natural.
Tarde. Hora de não-chegar. De partir.
O "ritus" na tua face querida. Como sempre: violento e rápido. Tal um relâmpago. E a certeza da tua dor: da tua certeza. A certeza de tudo o que buscas.
(As notas alucinantes de uma escala. O sobe-e-desce violento. Para. Agora, é o coração. No meu ser inteiro te aninhas e te abrigas. Como a ave no ninho ou o navio no ponto. E todo o corpo, toda a alma, todo o ser lateja em sangue e agonia. Ou em fogo. Que de fogo, sangue e agonia somos feitos. Que em fogo, sangue e agonia nos unimos).
Súbito, é o intervalo: os olhos que se adentram uns nos outros. A (o)pressão forte no seio. E a dor de não ser possível a unidade perfeita-permanente. A dor é o "leitmotiv". Cortina musical, a alegria.
Em meio a tanta ternura mútua, o não-brutal da realidade, como um soco. Partir. O ruído da chave na fechadura. (Noutra porta. Esta não se abre com chave, mas com ternura: aporta do ser).
O absurdo: partir. Ainda um pouco: a ternura querendo reter. Não o homem que possui-é-possuído, mas o amigo, a pessoa tão especial.
Terás que partir. Chegas na hora de não-vir. Tão tarde. Continuidade do separar que se repete vezes e vezes. Assim á a vida: sempre temos que estar partindo.
A morte: continuidade da vida. (Por isso, para que temer? Por que o medo? O odiar?) Cada momento vivido é a morte. Não de espreita, mas no momento pleno, em cada momento.
Mas é também a vida: plenitude, absoluto, vitória, conquista.
Temos que ir depressa dos braços um do outro, do meu ser, do teu ser, da minha alma, da tua alma.
Há que entrar nesse vale sombrio da ausência. Se é sombrio, tenebroso, vale atravessá-lo para o além-de-banhado de luz do amanhecer, do entardecer, de noite-a-dentro. Até nosso sempre renovado reencontro.
Tão tarde esta hora de não-chegar. De partir. Hora de dor. Que não passa.
Tua face dolorosa, homem amado, querido. "Ritus" que não controlas. Marcando a lança, dor / espinho / espada / farpa, lá dentro, no coração. Oculta. Desmentida. Real. Verdadeira. Tua chaga. Tu e tua (terrível / absurda) limitação. Teu infinito sem bordas nem horizontes.
Agora é o vazio - grita-nos algo, nos abismos do ser. Grita em silêncio. Um silêncio macio, acolchoado. Um silêncio de plumas afogando o grito que não irrompe, mas existe - a dor no seio do silêncio; o homem no seio da mulher; cabeça junto à cabeça; e os seios vazios do homem e do filho; o ser inteiro em plenitude da presença, da ausência. (Ninguém mais? Há o homem. E O outro. O Outro que jamais se apaga, cuja face brilha e se oculta - dolorosamente se oculta - nas dobras da maciez do prazer. A Face implacável da misericórdia. Presença)
Todos os verdadeiros passados. Todas as tempestades calmadas. A brisa, flores, a festa de ouro do ipê em glória de verão. Não há nada mais belo. (E os manacás?). O coração se dilata e o sangue jorra livre das chagas. Entra-me pelos sentidos a beleza, alma a dentro. A árvore toda amarela em flores. Nem uma folha. Cântico vegetal alucinado de verão.
A música. O vinho. O silêncio. A palavra. A casa. O sono. O sonho. A paz.
No íntimo, lá, bem dentro, toda a festa. Não, não há vazio em nós. Debatemo-nos: insetos na teia da aranha: o tempo. Morre nosso encontrar-se na glória de um não. Rude como porta que se fecha em nosso rosto.
Derrotados, vitoriosos, abandonados, desejados, queridos, amados, largados, exânimes, exangues. Sem nãos. Sem sins. Sem talvezes. Parados. Soltos. Nem na terra, nem no mar, nem no céu.
Horizontais: mudos, tensos. Verticais: iluminados, desfeitos em dor.
A dor: dentro, fora, em torno de.
A alegria: dentro, fora, em torno de.
Ascendo e voo para assegurar-me o sempre lugar no teu coração.
Vivi demais: o futuro inteiro naquele presente, tão tarde, hora de não-chegar, hora de partir.
Sinto-me intensamente viva: riqueza da madurez.
(Sinto a alegria crescer no meu ser como o filho no seio da sua mãe. A dolorosa/sangrenta alegria que não conhece a morte nem as trevas, porque as venceu para sempre. Esta alegria que alimentas com tua permanência - mesmo ausente. Estabilidade. A dor, apenas instabilidade, fugacidade. Pois, tudo passa. resta a alegria).
Tarde demais tua vinda, naquele dia. Aprendi: na futuridade existes sempre presente. Obreiro da hora (ultra)passada. (Da hora presente?) Não, para nós não há passado, presente, futuro. Só a vida: alegria.
E ainda que partas mil vezes ou chegues tão tarde, cada vez crescemos em amor.
*Professora e escritora | Garanhuns, PE - 2000.
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