Vou-me afastando aos poucos, assim como quem retira devagarinho a mão da mão de alguém que a quer reter. Sem magoar, sem ferir. Para que, quando não mais houver mão-na-mão, haja paz no coração de ambos. E uma doce e profunda amizade permanente. À prova de morte e de vida. E só o que é/será, importe.
Não sei ainda tua reação. Sei a minha. Estou-me retirando aos poucos. Agora, enquanto falo, já me afastei bem mais. É mais um estado de espírito, e por isso será, talvez, confuso o que tento dizer-te. Não é questão de espaço-tempo, pois estou aqui, onde sempre (?) estive. Vivendo este tempo, o mesmo tempo marcado. Retiro-me para além, no entanto, onde não é lugar nem tempo. Retiro-me apenas vagarosamente. Não quero magoar nem ferir.
Sei que a linguagem é quase hermética. Mas o que fazer, como dizer minha realidade sem tempo-espaço?
Pensas que não sofro a impossibilidade de dizer como todo mundo: vou para um lugar, em determinado tempo? Mas eu apenas me retiro. O retirar-me é um frequentativo-incoativo.
O pior é que, o que acontece comigo, acontece com todos. Mas têm uma absurda linguagem para falar deste ir.
Ora, estou me retirando pelo meu próprio bem e pelo teu.
Haverá recomeços intermináveis: sei da minha retirada, da minha determinação. Sei bem do que decidi. Eu os sofrerei um a um não sei por quanto tempo. O tempo não me importa: sou senhora do tempo, que poderá o tempo contra mim? Ele trabalha a meu favor. O tempo que muitos querem reter, que outros querem que passe... que passe... indiferente para mim, futura que sou.
Disponho de todo o tempo, é por isso que vou me retirando de mansinho. Tão de leve - quão distante já estou! que não serei percebida. E que, de repente, despertas e sentes que minha mão se retira, ah! Perdoa-me, nada poderei fazer. Porque desde agora já estou demasiada longe, eu, que sempre estou indo. Como o povo da promessa: blasfemo, reincidente, infiel, mas sempre a caminho. O povo da promessa e eu. Os mesmos rumos (des)conhecidos. As mesmas quedas. As mesmas ressureições. A mesma (in)certeza, esperança, fé.
Tão longe eu já me encontro, que não há vislumbre do meu vulto. Apenas um esquema. Esqueleto. Esboço. E eu partindo, sempre partindo. Jamais ficando ou (re)tornando.
Ao longo do caminho, encontros. É preciso não ignorá-los nem perdê-los. Se os perco é para sempre, embora sigam comigo os que perdi, e os que colhi. Sem mágoa, sem dor, sem sofrimento. Apenas o cômputo geral do caminho feito.
Carrego tantas visões, faces, corações, almas. Vivos e mortos. Sou consciente desta soma que me perfaz, de cada fio de cabelo que cai da minha cabeça. De cada pardal cujo preço é ínfimo. Consciente dos sorrisos de todas as crianças que encontrei e encontro. De todas as lágrimas que vi deslizarem e das que não vi. Consciente do meu ir. Ir em tal profundidade que não saio de mim mesma e jamais atinjo o extremo de mim.
Vou-me retirando e rogo que não seja pressentida minha retirada. Que tão leves, suaves, sejam meus gestos que tua mão não sinta o vazio da minha, sempre cheia de gestos de ternura.
Meus olhos têm que estar voltados para lá: além. Não é lugar, espaço ou tempo. Em mim, fora e muito além de mim, no ponto crucial do meu ser que é ao mesmo tempo, ponto de distância e ponto de vista. Para lá estou sempre indo. Intangível, não apenas intocável. (Não me deixo tocar senão pela mão do Amigo. Toque-libertação. Ele me diz: - Vem! E eu vou. - Pára! E eu páro. É Ele o que me pode atingir. Porque me conhece, e eu a Ele).
Mas, ainda assim, solitária - e selvagem - carrego multidões. Sigo com hordas. Sozinha, porém. Não posso saber senão dos que me falam, me afastam, me sorriem ou choram perto ou longe de mim, e do que toma a minha mão. De ti, que quem me desprendo de leve, para que possas ser livre, porque eu já sou liberta há muitas eras de humanidade, não de tempo.
(Estou tão sem fardos, tão leve, tão vazia e, no entanto tão plenificada. Ouço-os brincar, vejo-os sorrir, sinto-os em revolta, em protestos, em clamores... Sinto-lhes os olhos-de-fogo. Em fogo. Desaprenderam a chorar. Como da fidelidade e da verdade. Sabem apenas arrastar sua própria luta para sobreviverem. Não é compaixão que sinto. Essa compaixão melosa e ineficiente. Sinto-me solidária com todos, com cada um).
Sou obrigada a retirar a minha mão da tua, ainda que esteja contigo. A única mão que eu gostaria de sentir na minha. A única que (re)teve a minha.
Não quero condenar-te. Mas comecei a afastar-me diante de tua insegurança e de teu ciúme que camuflavam tua mentira, tuas infidelidades, teu medo de que eu soubesse.
Lembro-me: olhei-te e pedi: - Dize-me a verdade, és livre. Por que a mentira? E não quiseste enterrar-me tua fraqueza. Foi então que comecei a retirar-me. Aos poucos, mas seguramente. A cada movimento teu, imobilizo meus gestos, não o meu caminhar. Pois, para mim, é essencial ir. Ir sempre - continuar. Para além. Lá, onde não é lugar nem tempo. Para onde me impele meu ser, para onde sou contínua e intrinsecamente convocada. Caminhando sempre: o povo da promessa e eu.
*Professora e escritora | Garanhuns, PE - 2000.
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